A necessária desertificação

A vida de S. João Batista proclama que é urgente alimentar-se – leia-se: alimentar o coração e a vida – daquilo que desertifica, fazer um detox das coisas supérfluas para viver o Natal de Jesus.

O mês de dezembro é, sem dúvida, um dos mais belos do ano. Os jantares de Natal, os reencontros das famílias, a troca de presentes. Estamos no tempo em que as promoções cobrem as montras luminosas, invadem os telemóveis e emails com as mais
variadas sugestões: sempre limitadas e exclusivas. É preciso comprar prendas para todos: aquelas cheias de significado, ou uma qualquer lembrança simbólica, para que não falte qualquer coisa para desembrulhar. E é precisamente nesta época, decerto a mais consumista do ano, que a liturgia aponta, ironicamente – dir-se-ia, profeticamente – para a figura de um homem muito peculiar que, dizem, ensina a viver o tempo de Advento. Era alguém que andava no deserto, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. Um homem que atraía multidões e, agitando as consciências, despertava para o essencial: São João, o batista.

João é uma figura fascinante pela sua irreverência e humildade. Como é possível que o homem que prega ao rei Herodes para denunciar a sua conduta – o que mais tarde lhe trará a morte – seja precisamente aquele que sabe que a sua missão não lhe
pertence? Com efeito, João vem apenas anunciar a chegada de um outro, aquele que está para vir, como ele próprio diz: “a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias”. Este que diz de si mesmo que não é digno, andava no deserto, comia gafanhotos e mel silvestre.

É que podem faltar as árvores de Natal, as luzes lindas, as prendas, até a companhia daqueles a quem amamos – quantas vezes as circunstâncias assim o exigem. Jesus é que não pode faltar.

O deserto é o lugar do encontro com Deus e o gafanhoto, uma das sete pragas do Egito, é um animal que desertifica – um campo de trigo por onde passa esta praga, fica reduzido a nada. O mel, por sua vez, evoca a terra prometida, “a terra onde corre leite e mel”. A vida de S. João Batista proclama que é urgente alimentar-se – leia-se: alimentar o coração e a vida – daquilo que desertifica, fazer um detox das coisas supérfluas para viver o Natal de Jesus. João alimentava-se de gafanhotos, como quem afirma que o único alimento que não pode faltar é o de fazer a vontade do Pai que está nos Céus. É que podem faltar as árvores de Natal, as luzes lindas, as prendas, até a companhia daqueles a quem amamos – quantas vezes as circunstâncias assim o exigem. Jesus é que não pode faltar. João alimenta-se, afinal do que lhe dá o encontro com Deus e da doçura da sua promessa.

João: uma alma de fogo junto do qual ninguém fica indiferente. Os pensamentos e as palavras inspiram, mas é a presença daqueles que vivem por Deus que move os corações à mudança de vida. É que a maior distância do mundo é a que vai da cabeça
ao coração. Mas é preciso chegar ao coração porque é aí que o fogo de Deus é ateado.

É que a radicalidade no supérfluo distrai e aliena, mas a radicalidade no essencial dá conta de uma totalidade que só Deus pode trazer.

O que atraía as multidões era o fogo que João transportava. É que a radicalidade no supérfluo distrai e aliena, mas a radicalidade no essencial dá conta de uma totalidade que só Deus pode trazer. O coração medíocre é o que se contenta com pouco. Mas o coração de João Batista “ardia de zelo” pela causa do Senhor. Ele não era a luz, mas uma lâmpada que ardia e brilhava. É verdade, arde, por isso queima as deformidades, chama à conversão; mas também ilumina, apontando o caminho a percorrer, como um farol que orienta e atrai a si. Por isso é que as multidões acorriam ao deserto. Não para ver um homem com roupas finas, que as não tinha, nem para ver uma cana agitada pelo vento, num sensacionalismo mediático, mas para ouvir um profeta.

Atrativo, em João, não era o que ele vestia nem sequer o que dizia. João, o maior de todos os profetas, traz uma mensagem muito simples: “Convertei-vos porque o Messias está para chegar… e já está no meio de vós”. O que atrai não é o que ele diz, mas que seja ele a dizê-lo. Aquele que nasceu de uma mulher estéril, que não teve medo de viver no deserto e fez ouvir a sua voz junto das multidões. Sem procurar protagonismo, desejou ardentemente que Jesus cumprisse a sua missão e esperou-o com fé.

O desprendimento e a pobreza de João são uma campainha a questionar o consumismo desenfreado e voz inquietante a despertar-nos para o verdadeiro sentido do Natal: Deus vem habitar connosco! Como diz o cardeal D. Tolentino Mendonça: “Que
os nossos olhos, feitos para olhar as estrelas, não morram a olhar para os nossos sapatos”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.