A maior prova de que estamos vivos

O ser sal da terra é a ação de Deus em nós. É o contrário de se viver fechado. Ser sal da terra é viver de coração escancarado e aberto ao mundo e, por isso, nunca indiferente.

Sermos sal da terra é a maior prova de que estamos vivos. Porque o sal, por onde quer que passe, deixa sempre a sua marca. Precisamos mais do que nunca de ser este sal que dá vida. Talvez porque os últimos tempos, que já não sei bem quando é que começaram, estejam a ser de uma aceleração estonteante e profundamente desorientadora. Como ser sal da terra em tempo de guerra, como ser sal da terra num mundo que corre desenfreadamente, como ser sal da terra onde impera a tecnologia e a distância, como ser sal da terra na diversidade e perante indiferença. Ser sal da terra é a nossa vocação.

Como ser sal da terra perante o ritmo alucinante que o mundo nos impõe, perante o imediatismo, a rapidez constante, o ser preciso tudo para ontem, a obsessão pela produtividade. É preciso mergulhar fundo e lentamente. Ser sal da terra é ser presença de Deus e o caminho de Deus faz-se com paciência. Faz-se a experimentar cada passo e a arriscar no seguinte porque se confia e porque se espera. A propósito disto, tropecei outro dia num livro que se chama “Andar a pé” de Henry David Thoreau. O livro chamou a minha atenção por causa do seu título, talvez demasiado banal para aquilo que poderia estar à espera. Mas trouxe-o comigo e o livro fala sobre a beleza de, imaginem lá, andar a pé. Depois de o ler, fiquei precisamente presa à questão que hoje nos atormenta imensamente: o tempo. Estamos a perder demasiado tempo, estamos a ser pouco produtivos, estamos a falhar, não estamos a acompanhar o ritmo dos dias. Este livro fala sobre a “de arte de caminhar como a forma mais intensa de despertar os sentidos e a alma humana”, e perante esta beleza não podemos mesmo querer ter pressa. Somos sal quando retemperamos a terra com um novo ritmo, quando nos permitimos compreender o que o Papa Francisco queria dizer quando afirmou que “o tempo é superior ao espaço”. Ser sal da terra é mergulhar profundamente e lentamente.

Somos sal quando retemperamos a terra com um novo ritmo, quando nos permitimos compreender o que o Papa Francisco queria dizer quando afirmou que “o tempo é superior ao espaço”. Ser sal da terra é mergulhar profundamente e lentamente.

Não é novidade que vivemos num mundo cada vez mais tecnológico e digital. Num mundo que, apesar de ter tantas possibilidades, tantas vezes, nos aprisiona verdadeiramente. A ausência de fronteiras e de barreiras e a globalidade são talvez uma das maiores falácias dos últimos tempos, porque vamos a tantos locais, sem na verdade termos conseguido chegar até eles, e estamos com tantas pessoas, sem na verdade nos termos encontrado realmente com elas. Um paradoxo que nos desarma e que nos confronta diariamente e que nos faz reféns. Ser sal da terra é ser presença de Deus, uma presença que centra o olhar, que une o coração de cada um ao coração do outro. O digital trouxe-nos a urgência da proximidade. Somos sal da terra quando nos dispomos à entrega viva, à presença real. Nunca foi tão difícil estarmos próximos, porque nunca foi tão grande o individualismo e porque nunca foi tão grande a idiota crença de que somos auto-suficientes e de que nos bastamos a nós mesmos. Ser sal da terra é o reconhecimento profundo de que precisamos uns dos outros e que não há inovação capaz de competir com um abraço de irmãos. Ser sal da terra é transformar pela presença e pelo serviço, porque “maior é aquele que serve.”

O ser sal da terra é a ação de Deus em nós. É o contrário de se viver fechado. Ser sal da terra é viver de coração escancarado e aberto ao mundo e, por isso, nunca indiferente. A indiferença, essa perigosa e grande doença que nos afeta a todos, deixa-nos assustadoramente sozinhos. Porque nos fechamos, porque não olhamos o mundo, porque não tocamos as pessoas. Pergunto-me o que fazemos nós com os problemas do mundo, o que fazemos com as alegrias, com as lágrimas e com as dores dos outros. Podem ser nossas também? Ser sal da terra é deixar esta marca de Deus na terra e nos homens. É viver aberto à transformação. É viver em permanente renovação. É dar vida ao caminho pelo Evangelho. Ser sal da terra é a nossa vocação, porque cumpre a nossa humanidade. É a grande prova de que estamos vivos.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.