A Linguagem do Amor

O vosso bebé tem uma doença tão grave a que a maioria das crianças não sobrevive depois dos dois anos de idade. Como dizer isto numa língua que não era a minha e acreditar que as palavras eram as certas?

A noite anterior tinha sido quase em branco, nesta Noruega onde vivo há sete anos e onde tenho o privilégio de poder ser médica de meninas e meninos, especialidade que concluí em Portugal em 2010.

Os noruegueses são no geral cordiais e pouco exuberantes. Mais contidos, reservados. Frios não. Atentos sim. Características dos povos do Norte, de clima austero, habituados durante longas décadas a viver isolados, a lutar pela sobrevivência, a aceitar. Resilientes sim. Muito.

Nessa noite dominava-me uma angústia avassaladora, uma sensação de enorme incapacidade. Estava capaz de desistir, de pedir a outro que o fizesse por mim, tal era o medo de falhar naquela missão. A minha experiência anterior posicionava-me consciente de que, momentos desta intensidade, eram de uma extrema delicadeza. De como era determinante a forma como eram conduzidos. De como podiam ser lugares de grande sofrimento, mas também de um misterioso encontro com o mais profundo sentido da vida.

O vosso bebé tem uma doença tão grave a que a maioria das crianças não sobrevive depois dos dois anos de idade. Como dizer isto numa língua que não era a minha e acreditar que as palavras eram as certas? Saberia utilizar a entoação certa? Que fronteira religiosa, social e cultural teria que respeitar? Que limites afetivos teria de me colocar? A que sinais teria que estar atenta?

Como dizer isto numa língua que não era a minha e acreditar que as palavras eram as certas? Saberia utilizar a entoação certa? Que fronteira religiosa, social e cultural teria que respeitar?

Aquele instante, as palavras proferidas, os gestos encontrados ficariam para sempre na memória daqueles pais e isso inquietava-me profundamente. A barreira da língua colocava-me numa posição desconfortável. Como conseguir transmitir empatia, segurança, confiança, compaixão, esperança? Ensaiei várias vezes o que iria dizer para que não surgisse nenhuma palavra fora do lugar. Mas o dia mais triste da vida daqueles pais aproximava-se e eu continuava sem me sentir preparada.

Conversei com colegas, pedi conselhos, aprendi palavras novas. Nesse dia não consegui almoçar. Os dias já começavam a crescer e a luz do meio-dia entrava pelo gabinete alegrando-o. Comigo uma enfermeira norueguesa e um colega mais novo, interno da especialidade. Reorganizei o espaço para que ficássemos em círculo igualmente próximos uns dos outros. Tinha papéis com notas em cima da secretária, algumas palavras-chave para o caso de a memória me falhar.

Senti palpitações e suores frios, mas a hora chegava. Fui à sala de espera buscá-los, aquele pai e aquela mãe para quem a vida estava prestes a desmoronar. Sorri-lhes e percebi, na sua expressão, que não sabiam ao que vinham. Ofereci-lhes um café e convidei-os a sentarem-se confortáveis. Tanta solenidade fê-los estranhar e os semblantes tornaram-se então mais fechados.

E depois…como que imbuída de uma força maior, sem ainda hoje me lembrar exatamente das palavras que usei, lavados em lágrimas, abraçámo-nos em uníssono na partilha daquela dor.

Vem-me a memória aquela beleza de texto, tão intemporal, da carta de São Paulo aos Coríntios:

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei. Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá. O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura os seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Tão universal a linguagem do Amor!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.