A liberdade religiosa para o bem de todos, documento publicado em março, surge no seguimento das intuições do Concílio Vaticano II, como um esforço, por parte da Comissão Teológica Internacional (CTI), em ler os sinais dos (nossos) tempos (cf. §10). Ao reconhecer que o contexto hodierno difere da situação histórica na qual os padres conciliares apresentaram a Declaração sobre a Liberdade Religiosa Dignitatis humanae, em 1965 (cf. §1), a CTI admite que as sociedades ocidentais são hoje “estruturalmente inter-religiosas, inter-culturais e inter-étnicas” (cf. §9). Resultado do “movimento da história”, o mundo de hoje não se caracteriza apenas pela secularização. O nosso contexto é mais abrangente, pois, para além de secularizadas, as sociedades contemporâneas tendem a ser também “multi-religiosas” e “multi-étnicas” (cf. §10). É nesse novo contexto que a CTI reflete sobre a liberdade religiosa.
O documento A liberdade religiosa para o bem de todos tece importantes afirmações a dois níveis distintos: ad intra e ad extra. Em primeiro lugar, num discurso ad intra, isto é, num discurso dirigido sobretudo aos cristãos ou, mais especificamente, aos católicos, a CTI propõe uma interpretação da evolução da posição que o Magistério da Igreja tem tomado em relação à liberdade de religiosa e à liberdade de consciência. Antes da publicação da Dignitatis humanae, os pronunciamentos magisteriais tendiam a negar o direito de tais liberdades. Contudo, se tivermos em conta o contexto histórico em que se produziram tais declarações, podemos observar como, numa época em que “o cristianismo representava a religião de Estado e a religião dominante na sociedade”, surgiu uma “abordagem agressiva” que promovia um laicismo feroz no seu radical repúdio da fé cristã do espaço público e da vida dos cidadãos. É nesse contexto preciso que o Magistério Católico condenou as novas liberdades. E fê-lo mais com o intuito de negar a “apostasia da fé” do que com o objetivo de impossibilitar uma “legítima” e equilibrada “separação entre o Estado e a Igreja” (cf. §15). Ao situar as declarações magisteriais no seu contexto histórico, torna-se possível estabelecer uma hermenêutica do Vaticano II sem ruptura com passado, e ainda menos com os princípios fundamentais da doutrina cristã. Ao reconhecer hoje a liberdade religiosa e a liberdade de consciência da pessoa e das comunidades humanas, o Concílio “ofereceu um horizonte de credibilidade à Igreja” (cf. §1).
Este “horizonte de credibilidade” diz respeito à forma de atuar na sociedade enquanto cristão e enquanto Igreja. O documento da CTI sublinha, nesse contexto, o facto de o diálogo inter-religioso não estar em contradição com a missão evangelizadora da Igreja. O diálogo com o outro tem lugar precisamente no âmbito da missão eclesial que nós, cristãos, hoje enfrentamos. Pois o nosso “martírio” deve ser sempre vivido como um “testemunho não-violento” (cf. §81). Além disso, a colaboração com pessoas de credos diferentes pode também fomentar uma leitura positiva do lugar da religião no espaço público (cf. §77), como dimensão de um “humanismo integral” e como elemento cooperador do “bem comum”.
A responsabilidade pelo bem comum deve conduzir os cristãos a não se deixarem “enclausurar” num grupo “à parte” que pode sentir-se em “competição com o legítimo governo do Estado de direito e da sociedade civil”
Por fim, ainda no que diz respeito ao discurso ad intra, a CTI chama atenção para certos fenómenos negativos que estão ligados a formas de “violência”, perpetuada sobretudo nas redes sociais. Se os cristãos são chamados a participar “na nova ágora”, então devem evitar a promoção de fake news, bem como a excessiva polarização que estimula a fragmentação social e ódios entre grupos (cf. §54). A responsabilidade pelo bem comum deve conduzir os cristãos a não se deixarem “enclausurar” num grupo “à parte” que pode sentir-se em “competição com o legítimo governo do Estado de direito e da sociedade civil” (cf. §55).
Em termos ad extra, a CTI começa por chamar a atenção para a “ambiguidade do Estado neutro” (cf. §§64-65). O Estado supostamente neutro contradiz-se a si mesmo quando limita o “exercício da liberdade de consciência” dos cidadãos que professam legitimamente um credo religioso (cf. §§21, 62), ou quando procura impor um certo “agnosticismo”, mesmo que sub-repticiamente, de forma encapuçada (cf. §45). Em nome de uma suposta neutralidade religiosa e moral do Estado, parece ser possível que se promova a exclusão de certos cidadãos, denegrindo assim a sua dignidade e os seus direitos (cf. §§13, 66).
Se a “experiência religiosa” constituiu uma “dimensão legítima” do ser humano e do exercício de cidadania (cf. §46), o Estado, respeitador de um “humanismo integral da pessoa e da comunidade” (cf. §30), não deve impossibilitar a expressão pública da fé dos seus cidadãos. A “liberdade religiosa da pessoa na sua dimensão individual e comunitária” (cf. §11) requer a possibilidade de uma manifestação pública da fé (cf. §21). Evidentemente que ninguém deve ser coagido a tal manifestação. Mas proteger a liberdade do indivíduo, face aos grupos que se formam livremente no espaço público, não deve traduzir-se pela imposição forçada, por parte do Estado, de uma ideologia a-religiosa. Um tal exercício de poder não constitui uma função legítima de um Estado saudavelmente laico, pois não cabe ao Estado impor ideologias, sejam elas religiosas, antirreligiosas ou de qualquer outro teor. Do Estado espera-se tão somente, ou sobretudo, o respeito pela liberdade e consciência dos cidadãos.
O documento da CTI sublinha, ainda, o papel da religião em prol do bem comum. Enquanto a crença no Deus bíblico oferecer um fundamento seguro da dignidade de cada pessoa humana (cf. §64), a prática religiosa nutrirá o diálogo e a colaboração entre pessoas de credos diversos que partilham um espaço comum (cf. §§67-68). Nesse sentido, ao nos identificarmos com uma religião em particular, não temos de nos separar das outras pessoas, fragmentando e dividindo as nossas sociedades. Então, se, por um lado, a CTI apela a uma sã e equilibrada separação entre o Estado e as Religiões, o seu documento também rejeita veemente os “fundamentalismos religiosos”, incapazes de respeitar as liberdades essenciais da pessoa humana; fundamentalismos que talvez mais não sejam do que uma “reação” ao esvaziamento moral de certos Estados pretensamente neutros (cf. §2).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.