A importância de se chamar Maria

Talvez vivamos demasiado depressa, num mundo com cada vez mais janelas, num mundo com cada vez mais mundo, sem espaço para ouvir as “Marias” que ainda se encontram entre nós.

A inspiração para o título que elegi veio de Oscar Wilde, mas a estória que vou contar nada tem a ver com uma das últimas grandes comédias sociais deste dramaturgo da época vitoriana.

Há umas poucas semanas atrás, faleceu a Maria. Assim era conhecida e chamada pela vizinhança, que se dispensava de antepor “senhora” ao nome, até porque a sua enorme singeleza não admitia outros modos no trato. E por todos era respeitada! A Maria não teria mais de um 1,50 m de altura, não pesava mais de 50 quilos, tinha os cabelos negros, a pele tisnada pelos muitos anos de trabalho no campo. Mesmo em passo miudinho e sempre acelerado, trazia sempre consigo um sorriso cativante e uma simpatia genuína, embora fosse pouco palavrosa. Julgo que não sabia usar o alfabeto e que a sua escrita não passava do rabisco do nome. Não percebia o mundo, nem queria perceber. Conhecia as metamorfoses que aconteciam nas leiras que cultivava e lhe davam o sustento; chamava o gado pelo nome e sabia as suas manhas; recitava de cor as ladainhas do povo; cumpria os preceitos da religiosidade popular, manifestação de uma fé honesta e sentida. Irradiava felicidade! O seu mundo era feito do lugar onde vivia, da casa onde nasceu, dos vizinhos que saudava e ajudava, da terra que amanhava, dos animais que cuidava e lhe faziam companhia. Tinha 82 anos quando partiu. Paradoxalmente, apresentava um ar de menina, embora o tempo lhe desse uma cor trigueira, como se diz no Minho. No seu rosto, desprovido de disfarces, eram visíveis as marcas de uma vida dura, de sacrifício, de canseira. No seu calendário, tirando as idas à feira ou a alguma festa costumeira, não constavam datas para férias, feriados ou descanso.

Todos gostavam dela, mas poucos lhe terão dito o quanto a estimavam; todos a cumprimentavam, mas poucos terão olhado para ela; queria saber de todos, mas poucos terão perguntado por ela…

Após a sua morte, durante alguns dias, assombrou-me um pensamento que teimava em não desaparecer: a falta de palavras afetuosas para com aquela mulher que insistia em tocar e passar, ainda que ao de leve, pelas nossas vidas. Todos gostavam dela, mas poucos lhe terão dito o quanto a estimavam; todos a cumprimentavam, mas poucos terão olhado para ela; queria saber de todos, mas poucos terão perguntado por ela… O peso da consciência exigia uma homenagem, se bem que despretensiosa, por tudo aquilo que ela representava. Mas urge questionar: o que representaria, afinal, esta mulher? A Maria encerrava nela todo um património de afetos que são apanágio da mulher do Minho, que, qual património imaterial, exige preservação e que, à semelhança doutros patrimónios imateriais, se materializa em algo tangível. Esta tangibilidade é visível nas paisagens da região, cuja marca do trabalho foi impressa pela força feminina.

A predominância do minifúndio e as leis de transmissão do património, entre outros motivos, contribuíram para que, desde o século XVI, o Minho sofresse uma verdadeira sangria de homens, que, para comporem a vida, deixaram para trás terra, casa e família e foram à procura de melhor sorte noutros lugares. Os homens partiam e as mulheres transformavam-se em “viúvas de vivos”. No século XIX, a emigração masculina para o Brasil intensificou-se e as mulheres minhotas foram obrigadas a um quotidiano mais exposto e a assumirem outras responsabilidades. A economia doméstica, a educação dos filhos e a gestão das propriedades ficaram a seu cargo, sem que essas obrigações as atrapalhassem ou amedrontassem.

A Maria vivia no mundo de hoje, mas não o conhecia. Ao mesmo tempo, o seu mundo estava a desaparecer, sem que ela se apercebesse.

Já no século XX, quando o Brasil foi trocado pela França como primeiro destino de emigração, algumas mulheres partiram com os maridos, mas as que ficavam teimavam em lavrar os campos, semear o milho, cortar a erva, apascentar os animais, com uma determinação inabalável, fizesse frio ou calor… Não será exagerado nem descabido dizer que a paisagem do Minho também foi moldada, ao longo de séculos, pela mulher. Se essa mulher tivesse nome chamava-se Maria. A mulher do Minho, tal como a Maria, não viu o mundo, mas fez da terra o seu mundo, permitindo que outros o alcançassem. Exemplo de verdadeira abnegação, deu o seu lugar aos filhos, aos maridos, aos amigos, aos familiares e vizinhos. É assim a mulher do Minho…

A Maria vivia no mundo de hoje, mas não o conhecia. Ao mesmo tempo, o seu mundo estava a desaparecer, sem que ela se apercebesse. Se calhar, tomados pela idiotice, alguns dirão: Ainda bem! Talvez tenha partido sem tocar num computador, sem saber o que era a internet, as redes sociais, a globalização, as alterações climáticas ou o Estado Social que lhe dava uma magra reforma, pouco condizente com uma vida consumida pelo trabalho. A sua morte e a de outras “Marias” faz perigar um património rural que importa preservar: os serões, as sociabilidades geradas pelas festas e romarias, os folguedos improvisados por altura das sementeiras e das colheitas… O património imaterial é o que nos distingue do outro, perante a pretensão de querermos ser todos iguais. Se as pedras falam e contam o nosso passado e, por isso, o património edificado é inventariado e classificado, e o património móvel, de valor, está guardado em museus, torna-se cada vez mais imperioso ouvir as “Marias”, que são autênticos arquivos vivos e exímias contadoras de estórias, da nossa História. Se não as ouvirmos, perdemos a sua memória e com elas todo um património imaterial. Talvez vivamos demasiado depressa, num mundo com cada vez mais janelas, num mundo com cada vez mais mundo, sem espaço para ouvir as “Marias” que ainda se encontram entre nós. Convirá ter a consciência da importância de preservar as suas memórias, que são testemunhos da nossa singularidade e, sobretudo, aprender com a Maria a apreciar o nosso mundo por mais pequeno que seja.

 

Fotografia de Cristian Newman – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.