Há menos de dois meses, a 24 de Abril, a Europa tremeu, temendo uma improvável, mas que teria sido profundamente disruptiva, vitória de Marine Le Pen nas eleições presidenciais francesas. Não aconteceu, mas todas as razões para estarmos preocupados permanecem. E não é só por causa das propostas concretas de Marine Le Pen. É, sobretudo, por aquilo que representa: a ideia de que o sistema em que vivemos é perverso e irremediavelmente injusto. E que é preciso fazer um novo.
Le Pen, como Mélenchon, Salvini, Varoufakis, Órban ou Ventura não querem melhorar o mundo em que vivemos. Querem desfazê-lo e fazer outro, à medida dos seus valores. São messiânicos. É esse o seu grande perigo. E é isso que os torna tão parecidos. E tão distantes da ideia de Europa e Ocidente que fomos fazendo. E que hoje atrai a Ucrânia.
Há dois grandes tipos de divergências na política europeia. As meramente ideológicas e as ideológicas e sistémicas. As divergências ideológicas representam propostas políticas diferentes para o mesmo sistema. À esquerda e à direita há ideias profundamente diferentes sobre o Estado, a economia, as liberdades, a justiça. Tudo. Mas há a convicção (ou pelo menos a aceitação) de que a arquitectura fundamental do mundo em que queremos viver é esta: democrática, liberal e sob o império da Lei. Aquilo que os extremistas e radicais propõem é fazer um sistema novo, assente numa ideia de justiça e de valores onde só parte da comunidade política se pode rever. Uns contra os outros.
Nos partidos, nas academias, nos livros, os entusiastas da reconfiguração política acreditam que a divergência tenderá a deixar de ser ideológica, sobre os meios e as políticas, para ser identitária. Sendo alguns deles profundamente ideológicos, descobriram como encher, à vez, o campo dos nacionalistas ou dos revolucionários com descontentes. Quem pertence ao grupo dos que beneficiam da modernidade, de um lado, quem não beneficia, do outro. É por isso que, em parte, Le Pen e Mélenchon competiam pelo mesmo eleitorado.
Aquilo que os extremistas e radicais propõem é fazer um sistema novo, assente numa ideia de justiça e de valores onde só parte da comunidade política se pode rever. Uns contra os outros.
Há uma passagem no discurso de André Ventura nas comemorações do 25 de Abril deste ano, precisamente um dia após a derrota de Marine Le Pen, que ilustra bem o que está em causa. Disse o líder do Chega que “hoje devíamos olhar para os portugueses e dizer desculpem porque falhámos. Falhámos na justiça que construímos, falhámos no império que se dissolveu e que deixou outros países à sua mercê e famílias à sua sorte, nos jovens que querem emigrar como nunca no país que lhes tinha prometido ser o país da prosperidade, falhámos aos pensionistas e reformados que têm hoje o pior poder de compra da União Europeia”.
O problema deste discurso não está na listagem das queixas, algumas bem reais. O problema é que Ventura culpa o sistema, democrático, não culpa as escolhas políticas feitas em democracia e liberdade. O erro de Ventura é que a liberdade e a democracia não são um programa político, são a condição. A democracia não vale por melhorar a vida, vale por ser o único sistema que permite escolher o caminho. O bom e o mau. Em liberdade.
É exactamente aqui que Ventura e Órban, Salvini e Le Pen, mas também Varoufakis e Mélenchon se encontram. E é também aqui que se traça a fronteira entre quem faz a Europa da União Europeia, com divergências, e quem a recusa, seja em que circunstância for.
A União Europeia de hoje é o produto de uma ideia forte: acreditar que a História ensinou aos europeus que a guerra e a miséria se evitam e que a paz e a prosperidade se alcançam em conjunto. E é o fruto de uma grande coligação entre socialistas e sociais-democratas, e democrata-cristãos e conservadores, a que se foram juntando, ao longo dos anos e sobretudo nos tempos mais recentes, liberais e ecologistas.
A prova da força da ideia de compromisso entre os partidos e ideias é evidente nas votações no Parlamento Europeu que são, normalmente, por maioria mais que qualificada. Tal como no Conselho, onde se sentam os governos dos 27 Estados membros da União Europeia, o acordo é normalmente alcançado por maiorias maiores do que o necessário. É a ideia de compromisso, fundamental à União Europeia.
No dia em que as directivas e regulamento aprovadas em Bruxelas não permitirem políticas concretas diferentes em cada Estado membro da União Europeia, a Europa deixou de ser um sistema em que convivemos, para ser um programa político que deixará sempre alguém de fora. Precisamente porque a União Europeia, ao contrário de cada um dos seus países, tem uma lógica utilitária. Tirando para os utopistas da unificação, que têm um sonho, a maior parte dos europeus quer a Europa porque acredita que tem vantagens. Não por ser a expressão da sua identidade.
Mélenchon, nas legislativas deste mês (12 e 19 de Junho), e Le Pen, nas presidenciais em Abril, são um problema, mas também são, sobretudo, um sintoma. Os eleitores dos extremistas e radicais são os que acham que ficaram para trás. Com ou sem razões. Não é um voto ideológico, é um voto de ressentimento. O anti-sistema é a convicção de que se está do lado de fora. Não há nada a perder. É aqui que está o grande desafio.
Os eleitores dos extremistas e radicais são os que acham que ficaram para trás. Com ou sem razões. Não é um voto ideológico, é um voto de ressentimento. O anti-sistema é a convicção de que se está do lado de fora. Não há nada a perder. É aqui que está o grande desafio.
Sem uma convicção de pertença não há noção de comunidade política, de partilha de algum destino, de vantagens comuns, mesmo que diferenciadas. Não há sistema que resista. E sem diferença também não. Uma comunidade política só pode ser plural ou pura. Ou quem é diferente faz parte ainda que pense diferente, ou só participa quem é igual. Os radicais, à esquerda e à direita, só aceitam comunidades puras. Dos nacionais, dos da raça, à direita. Dos que estão do lado do progresso, definido pelos progressistas, à esquerda. Uns e outros, não aceitam diferentes porque a diferença é a capitulação do conceito, é incompatível com a identidade como fundamento da comunidade.
Do muito que é necessário fazer para recuperar os eleitores das extremas, o mais importante é restaurar a ideia de comunidade. De pluralidade. De pertença. Sendo estes eleitores os (que se sentem) excluídos, só a ideia de pertença a uma comunidade, plural, diversa, mas igual na sua humanidade, pode restaurar. Sendo, para isso, necessário que os benefícios do sistema cheguem a todos. É por isso que uma Igreja fundada no amor ao próximo, muito mais do que na vigilância da moral alheia, faz tanta falta no diálogo social. Porque liga comunidades.
Segundo os dados do Eurobarómetro publicados o mês passado, dois meses após o começo da invasão russa, 89% dos europeus sentem simpatia pelos ucranianos, 71% acredita que a Ucrânia faz parte da família europeia, e 66% acredita que a Ucrânia deve entrar quando esteja preparada. São estes europeus que contribuem para a comunidade política europeia, assente na ideia de que a prosperidade se partilha. Com os outros. Diferentes, como nós.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.