Desde os anos 70 do século passado, a História do tempo presente tem merecido um interesse crescente e tem-se afirmado como mais uma área da investigação historiográfica, o que não deixa de constituir, antes de mais, um regresso da História às suas origens, quando começou por se ocupar do presente e sobre ele refletir. Foi o que fizeram, nos seus primórdios, aqueles que consideramos os pais da História: Tucídides, Heródoto, Políbio, Tito Lívio, Gregório de Tours, entre outros.
A conceção da História como ciência do passado é, substancialmente, uma construção do século XIX, seguida pela conceção rankiana, quando se procurava garantir a objetividade do trabalho historiográfico e os historiadores contratados para lecionarem nas universidades não iam além da Idade Média. Esta tendência foi-se sedimentando na centúria seguinte, com vários historiadores a sustentarem que o passado era o seu objeto de estudo, remetendo o presente para os sociólogos e outros cientistas sociais. Esta perspetiva prendeu a História ao testemunho documental, afastando a possibilidade de considerar outras fontes e dificultando o cruzamento de dados para chegar à tão almejada objetividade.
Felizmente, a afirmação da História do tempo presente e a reflexão que o historiador sobre ele pode fazer dão-lhe a oportunidade de ser, simultaneamente, protagonista e testemunha da época e dos acontecimentos coetâneos. Esta condição exige-lhe, desde logo, um maior esforço no sentido de discernir interesses ou conflitos ideológicos, que poderão surgir a propósito de qualquer período histórico. Hoje, quando o papel quase se tornou obsoleto e o digital impera, questionamo-nos mais sobre o excesso de informação e a forma como a filtramos do que sobre a falta de dados.
Este retorno ao presente por parte da História, já apregoado por Marc Bloch, que considerava que um historiador não pode ter a pretensão de investigar o passado sem conhecer o seu presente, tem assumido particular relevância nos dias que correm.
Este retorno ao presente por parte da História, já apregoado por Marc Bloch, que considerava que um historiador não pode ter a pretensão de investigar o passado sem conhecer o seu presente, tem assumido particular relevância nos dias que correm, marcados por uma pandemia que não discrimina terras nem gentes, quando os “profissionais do passado”, ironicamente, são convocados pelos media para dissertar sobre os flagelos que assolaram o país e o mundo, focando-se, sobretudo, na peste negra e na pneumónica. Curiosamente, regra geral, não os questionam sobre o presente, não se atendendo à sua efemeridade e à sua rápida passagem à categoria de passado. Não há um corte, mas uma continuidade! De facto, as epidemias acompanham o Homem e algumas até coincidiram no tempo: gripe, varíola, febre-amarela, cólera, tifo, febre tifóide, tuberculose… Em surtos consecutivos, estas moléstias atormentaram os portugueses durante o século XIX, algumas nos inícios do século XX e outras, como a febre-amarela, a cólera, a raiva ou a tuberculose, persistiram até hoje. Refira-se, a propósito, que, em 2018, cerca de 10 milhões de pessoas foram infetadas e 1,5 milhões foram vitimadas pela tuberculose, que, no século XIX, pela elevada contagiosidade, era denominada “peste branca”. Hoje, continua a ceifar a vida dos mais pobres, daqueles que (sobre) vivem em condições muito precárias e que têm mais dificuldade em aceder aos cuidados básicos de saúde. E o que dizer da gripe? Presente ao longo dos séculos, com vários surtos epidémicos, continua a matar em larga escala.
Desses tempos, de um passado que já foi presente, mas parece bem distante, colhemos preocupações muito próximas das de hoje. Nalguns casos, só mudam as palavras: os cárceres deram lugar a estabelecimentos prisionais, os asilos às estruturas residenciais para idosos, os facultativos aos profissionais de saúde… Em tempos de epidemia, eram muitas e variadas as medidas adotadas: intensificava-se o apoio às instituições coletivas, aumentava-se a capacidade hospitalar, apelava-se à solidariedade com os mais desfavorecidos, reforçava-se a higienização dos espaços públicos, criavam-se comissões de socorros, isolavam-se as casas dos infetados, apartavam-se as crianças, interrompiam-se as comunicações, estabeleciam-se cordões sanitários, decretavam-se quarentenas, improvisavam-se hospitais, criavam-se estruturas para socorrer os epidemiados, suspendiam-se as cerimónias religiosas, fechavam-se escolas e igrejas… Quando foram tomadas estas medidas? Na segunda metade do século XIX e nos inícios do século XX, umas para combater a cólera, outras a pneumónica. Sobre esta última quase caiu um manto de silêncio, afastado, mais tarde, quando o mundo voltou a sofrer os efeitos das epidemias de gripe.
Não vivemos num admirável mundo novo! A História tem a faculdade de nos mostrar isso mesmo e de evidenciar as nossas vulnerabilidades, apesar das conquistas e dos progressos alcançados em domínios muito variados. Por outro lado, o rol dos “abusos” que têm sido praticados é extenso: o desrespeito pelo próximo; a negação do direito à diferença; a falta de solidariedade; uma certa egolatria que leva o Homem a desafiar a Natureza e a desconsiderar valores fundamentais, postos em causa pelo comodismo, pela ganância desmedida, pelo culto da aparência… O caráter orgânico das relações é substituído por uma certa mecânica que se desmorona em tempos como os que vivemos. Quem nos mostra tudo isto? Surpreenda-se: a História!
A História do tempo presente cumpre uma função primordial: interpretar o presente, sabendo que este será rapidamente passado, cruzando-o com as leituras mais distantes do seu próprio passado. Se atendermos a esta perspetiva, veremos que a História não se repete, mas que podemos aprender muito com ela!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.