As autoridades de saúde atuam num limbo de credibilidade. O sucesso dos seus avisos diminui a sua reputação: sempre que gritam “desgraça” e esta não se concretiza, menos pessoas as ouvem. Se os avisos das autoridades forem regularmente vistos como falsos, estas arriscam-se a serem vistas como um Pedro, da história de Pedro e o Lobo.
Necessitamos de autoridades credíveis. Especialmente nesta altura, precisamos de orientação que todos aceitem; precisamos de liderança sem coerção. Para isso, as autoridades têm de cuidar da sua reputação.
Pedro tinha uma solução para manter a credibilidade dos seus avisos: não brincar e parar de gritar. As autoridades não o podem fazer, já que se tornariam redundantes: precisamos dos seus avisos. Mas então, como resolver, ou pelo menos, mitigar esta potencial perda de credibilidade?
As autoridades de saúde têm de ser transparentes e altamente escrutináveis. Se Pedro conseguisse demonstrar que tinha uma suspeita séria de que um lobo se aproximava, então poderia ter gritado as vezes que quisesse, e continuaria a ser levado a sério.
As autoridades não disponibilizam os dados de forma a que possam ser analisados por quem se interessar.
No entanto, o comportamento das nossas autoridades está a diminuir a sua própria credibilidade. Para além das incursões no jogo político (e.g. uso máscaras nas comemorações do 25 de abril), não tomaram a iniciativa de disponibilizar toda a informação de forma transparente. Isto põe-nos em risco, já que o comportamento da comunidade é influenciado pelo quanto acreditamos em quem nos lidera. A credibilidade ganha-se com um escrutínio total. Não se ganha com artifícios comunicacionais, como entrevistas pessoais, que manipulam emoções, mas que não acrescentam nada de substancial.
As autoridades não disponibilizam os dados de forma a que possam ser analisados por quem se interessar. A informação é incerta e certamente será difícil de coletar. No entanto, mesmo estas limitações devem ser transparentes. Cientistas de dados e da área da saúde já alertaram que os números, tal como são disponibilizados, não são trabalháveis. Mesmo que o acesso a alguns (limitados) dados seja agora possível, muitos dos problemas apontados subsistem. De qualquer maneira, a credibilidade já foi reduzida.
Mas há mais. As autoridades não divulgam de forma sistemática como calculam os números que apresentam. Não existem notas metodológicas claras sobre o que é divulgado nem referências decentes. Por exemplo, a já famosa taxa R foi divulgada recentemente num documento do governo que cita Nunes et al, 2020 (figura 3, página 9). No entanto o documento não inclui bibliografia, e assim não conseguimos saber quem é Nunes, quem são os seus coautores, nem o que fizeram nesse estudo. Sem esta informação não podemos escrutinar o que nos é apresentado. Não conseguimos formar perspetivas complementares sobre a realidade. A fotografia do que se passa no país fica menos nítida.
Várias questões deviam ser tornadas transparentes: houve alguma mudança metodológica desde que começou a contabilização de casos? Os números apresentados pela Direção-geral da Saúde (DGS) incluem casos, internamentos e mortes que ocorrem em hospitais privados? Que critérios se usam para realizar testes? E que critérios se usam para que se considerem os mortos como mortos por covid-19? Como se compara o tratamento de dados da DGS com o que se faz noutros países? Os números são comparáveis internacionalmente? Quais são as capacidades e taxas de utilização das unidades com capacidade para receber doentes? Como evoluíram ao longo do tempo? Quais são as limitações que a DGS identifica nas suas análises de dados?
Provavelmente, muitas destas perguntas têm uma resposta fácil e não comprometedora. No entanto, não o sabemos. E assim fica a pergunta: estamos a ser liderados por um Pedro que simula uma realidade, ou por um Pedro que não a sabe transmitir? De qualquer forma, devemos exigir mais. Sem transparência e escrutínio as autoridades de saúde perdem credibilidade. Com isso, criamos um vazio de liderança que tem como resultado a insegurança da população ou mesmo uma menor capacidade de lidar com a pandemia.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.