A fé que se celebra: rito litúrgico e mediação do corpo

Comunga cada qual o seu pão inteiro ou comungamos todos de um só corpo partido?

O rito litúrgico será a linguagem mais rica que a Igreja tem, a mais completa. Na liturgia, a fé, que é essencialmente confissão da Páscoa do Senhor Jesus e ligação existencial à vida que daí jorra, celebra-se em comunidade, mediada pelo corpo. Pelo corpo, com as suas múltiplas linguagens, que cada ser humano é e com o qual se situa no espaço e no tempo e num campo amplo de interações e de relações; pelo corpo diferenciado e orgânico que cada comunidade forma. Aqui, a fé não se pensa apenas. Não se sente apenas. Não se cumpre apenas. Celebra-se. A liturgia é ação. É ação ritual, corpórea e comum que medeia tangível e sensivelmente a relação real da comunidade eclesial e de cada batizado com a Páscoa do Senhor. A sua linguagem é performativa. Por ser ato do ser humano, é inteligente, sensível, volitivo, claro. Mas, antes de tudo, é ato do corpo dotado de sentidos, de cinco, pelo menos, corpo concreto e situado, inquieto e incompleto, mais atraente ou mais incómodo, mais enérgico ou mais passivo, umas vezes doente, outras vezes em plena forma. Além disso e não menos relevante, a ação litúrgica é ato do corpo eclesial, diferenciado e uno. Não é ação de um só ou de uns poucos em benefício dos restantes, quais destinatários passivos, mas de toda a assembleia, a qual, tal como o presidente e como cada um dos fiéis, é, ela mesma, sujeito ativo.

Mas a relação que mantemos com o rito litúrgico – fiéis, ministros, comunidades – continua longe de colher toda a sua riqueza e de realizar todo o seu alcance. O registo individual, interior e subjetivo, de um lado, e aquele comunitário, exterior e objetivo, do outro, tendem a manter-se não suficientemente co-implicados na compreensão que temos da fé e na forma com praticamos o rito. Este alheamento, porém, é artificial. A realidade liga-os, ainda que disso não se tivesse imediata consciência. O conteúdo da fé e a forma ritual implicam-se mutuamente. A forma de celebrar diz sempre uma terminada compreensão da fé, tal como esta se exprime sempre numa determinada forma ritual.

Cabe-nos, ainda assim, reconhecer a tendência para subestimar a relação íntima entre conteúdo da fé e a sua forma ritual. Por exemplo, se atendermos às regras excecionais observadas na liturgia durante a pandemia, tal como já pude refletir noutro texto, podemos  verificar como têm reforçado esse alheamento. Mas seria ingénuo pensar que, por exemplo, estar sozinho na Eucaristia ou estar com outros nada diz sobre a fé que professamos, ou que significa o mesmo o facto do ministro ordenado celebrar sozinho ou de presidir a uma assembleia que se compreende a celebrar como corpo uno e plural. Achar-se-á que estar quietos, mudos e intocáveis resultará o mesmo que deslocar-se, responder e cantar, tocar e ser tocado pelos outros membros da assembleia? Que a Palavra de Deus seja impressa numa folha para ser lida individualmente por cada fiel no seu lugar – com mais atenção, justifica-se – será a mesma coisa que proclamá-la numa assembleia, pela boca de alguém, para que seja escutada por ouvidos reais? Que o olfato seja requisitado ou seja sempre dispensado será irrelevante? Não será a fé também uma questão de odor e de apreço sensível? Será indiferente que o pão não pareça visualmente pão ou que cada partícula, tal como se usa habitualmente, de facto, não seja partícula, fragmento partido de um todo maior, mas tenha, à partida, a forma circular perfeita, como se fosse um “inteiro em miniatura”, como alguém lhe chamou? Comunga cada qual o seu pão inteiro ou comungamos todos de um só corpo partido? Que o pão e o vinho sejam apresentados por fiéis para a Eucaristia será igual a que já estejam desde o início em cima do altar, trazidos por ninguém? E será igual que o presidente se aproxime do altar como de Cristo, percorrendo o espaço físico da igreja, como qualquer outro fiel, ou que apareça saído diretamente da sacristia, como se o altar lhe pertencesse? E muitos outros exemplos poderiam ser dados. No rito, nenhuma expressão do corpo é insignificante. Queira-se ou não, aí, a fé é mais dita pelos gestos que se fazem ou que não se fazem, que se fazem bem ou que se fazem mal, do que pelas palavras que se pronunciam ou pelo significado nocional que se lhes dá. A palavra terá sempre o seu lugar – somos seres de palavra – mas importa que diga – que não contradiga – o que os gestos fazem.

Comunga cada qual o seu pão inteiro ou comungamos todos de um só corpo partido? Que o pão e o vinho sejam apresentados por fiéis para a Eucaristia será igual a que já estejam desde o início em cima do altar, trazidos por ninguém?

Quer o rito litúrgico se viva no registo da obrigação, quer no registo da devoção, quer ainda no da relação sociológica ou cultural, uma forma bastante comum de o compreender e de participar nele poderá ser identificado à “bula explicativa”. Sobressai a explicação, a pedagogia, a compreensão. Porque já pouco se compreende, tudo deve ser explicado. Tudo tem ou tem que ter um significado nocional. É como se os símbolos não agissem por si. Simplesmente representam alguma coisa, que precisa de ser explicada para ser apreendida e valorizada. Caso contrário, diz-se, são inúteis. A Palavra de Deus, mais do que ser bem proclamada ou generosamente escutada, é explicada e compreendida. Importa que o “padre” fale bem, porque disso depende o proveito da celebração ou a falta dele. A qualidade dos gestos e dos movimentos, o cuidado dos silêncios e dos espaços tendem a ser marginais. Do Evangelho, resultam habitualmente três ideias que ensinam coisas e satisfazem a mente, nunca três sons que se escutam, três perfumes ou três sabores que se apreciam, três toques que tocam o corpo e que implicam os restantes sentidos. Portanto, a Palavra significa. Não tem timbre, não tem sabor nem perfume, não afaga a pele nem fere a carne, não move o corpo. Importa o conteúdo. A forma é só embrulho dispensável. O espaço, a luz e as sombras, o ritmo, os movimentos, os gestos litúrgicos não falam ou não são escutados por si mesmos. Muitas vezes, simplesmente, porque não se lhes dá nem espaço, nem tempo. A atuação de ministros e fiéis não lhes rende suficiente justiça. São mais instrumentos circunstâncias do que lugar efetivo de mediação da graça, sem o qual esta não se daria. As coisas não são usadas e os gestos não são feitos de modo a valerem por si, a ensinarem por si, a realizarem o que significam no ato de serem agidos.

Complicado? Talvez não tanto, dado ser tão elementar. Pensemos no beijo ou no abraço. Quem é que beijando outra pessoa sentirá necessidade de dizer o significado do que está a fazer? Será necessário explicar o que significa? Se houver verdade, não bastará beijar ou abraçar para que o gesto realize o que significa, envolvendo e transformando quem dá e quem recebe, precisamente pelo que acontece entre ambos? Por outro lado, o afeto ou a proximidade, não se esgotando naquele beijo ou naquele abraço, não se dariam sem esses atos corpóreos, que são indistintamente materiais e espirituais. Aprenderia a criança o afeto se nunca fosse beijada, acariciada, interpelada pelo sorriso ou por uma voz quente?  “A realidade é superior à ideia”, diria o Papa Francisco. O Verbo encarna; a carne é capaz do Verbo, dizemos desde os primeiros tempos da Igreja. Ora, o rito litúrgico é linguagem desta ordem. De tão bem feito, não deveria precisar que se lhe explicasse o significado. Pelo menos enquanto se faz. Pode e deve explicar-se antes e depois, como forma necessária de iniciação ao rito, mas não enquanto se faz. No rito, é o ato de fazer que diz. Dirá bem e fará bem se for bem feito. Dirá mal e fará mal se for mal feito. No rito, a forma é realmente conteúdo. O conteúdo diz-se como forma. De novo, o Verbo diz-se fazendo-se carne.

Outro modo de relação comum com o ato litúrgico é do tipo “pirotécnico”. Procura-se ou oferece-se entretenimento emotivo. Sucedem-se os efeitos especiais que encham o olho, que excitem a pele, que deem prazer imediato ao ouvido. Requisita-se a sensibilidade mais imediata e superficial, a atenção menos implicada, as harmonias mais fáceis, no desejo mercantil de agradar, de justificar o tempo requisitado e, se possível, de voltar a ter o mesmo público num próximo espetáculo. Não nos surpreendamos que, de acordo com este registo, mais tarde ou mais cedo, a prática litúrgica se torne irrelevante e seja abandonada. Trata-se de um registo enganoso, destinado ao cansaço e ao fracasso, mais não fosse porque nunca poderia competir com os recursos e a sofisticação da indústria do entretenimento. Dura enquanto durar a criatividade para inventar coisas ou dinâmicas atrativas e emotivas e enquanto durar o interesse e o agrado. Na verdade, entretém sensivelmente, mas não inicia humana e espiritualmente. Consome-se como objeto. Não implica o sujeito.

A qualidade dos gestos e dos movimentos, o cuidado dos silêncios e dos espaços tendem a ser marginais. Do Evangelho, resultam habitualmente três ideias que ensinam coisas e satisfazem a mente, nunca três sons que se escutam, três perfumes ou três sabores que se apreciam, três toques que tocam o corpo e que implicam os restantes sentidos.

Há também a liturgia “engenharia mecânica”, quando se absolutiza a forma, fazendo-se formalismo puro, culto do protocolo irrepreensível, da execução perfeita de todas as rúbricas, dos ministros impassíveis e intocáveis, hieráticos, separados. Também esta liturgia, ainda que pretensamente mais fiel, refinada e erudita – mais em contacto com o sagrado, dirão alguns –, se pode tornar espetáculo para os cultores da perfeição e da sacralidade separada. E há a liturgia “devocional, intimista, estática”, onde tudo é intimíssimo, profundíssimo, elevadíssimo. O Senhor recebe-se no coração, não no corpo, que é indigno. O rito não é prática comum. É culto do ministro, expressão do seu poder sacral. E é vivência interna, separada, sem relação e, por isso, sem comunhão de pessoas reais. É só alma, só espírito, só êxtase ou só ascese. Na realidade, tende a exprimir uma sensibilidade de sabor gnóstico. Quanto mais alto mais divino. Quanto menos corpóreo, mais espiritual. Quanto mais desencarnado, mais santo.

Reconheçamos que a versão da fé que mais se promove e mais se cultiva tende a ser ou intelectual, ou sentimental, ou moral. Pensa-se. Sente-se. Observa-se. Por isso, como doutrina, explica-se e compreende-se. Como espiritualidade, excita-se o sentimento e prova-se emoção. Como norma, apela-se à vontade e observa-se. Requisita a mente, suscita sentimento, move a vontade. Tudo em privado com o Senhor, para a “salvação da própria alma”. A forma ritual da fé, que é ação do corpo, tende a parecer, ou exterior e formal, talvez inautêntica e, por isso, dispensável, ou obrigação que se cumpre para beneficiar dos seus frutos espirituais, ou, então, objeto de devoção pessoal. A efetiva mediação corpórea da graça e a ação comum do Povo de Deus, corpo orgânico de muitos membros, parecem não ser particularmente relevantes nem centrais.

Não deixa, porém, de ser curiosa e até contraditória esta indiferença. Num tempo que tanto valoriza o corpo, os sentidos, as “performances”, a nossa atenção cristã insiste em concentrar-se sobretudo no conteúdo nocional, na moção sentimental ou na norma moral. E está bem, porque são dimensões incontornáveis da experiência crente. Porém, não são suficientes. Não estranhemos, por isso, que, para muitos, a liturgia acabe por ser um conjunto de formas sem força e que as forças que habitam cada um, os grupos e as sociedades – vitais, espirituais, eróticas, imaginativas, etc. – não encontrem aí lugar. Pode acontecer que estejamos a gerir formas que perderam a força, ao mesmo tempo que nos faltam formas que deem lugar às forças que tocam e que movem os homens e as mulheres do nosso tempo. Mas a ser verdadeira e justa, a ação litúrgica deveria ser capaz de fazer encontrar, de modo vital e operativo, formas e forças, sabendo que as primeiras sem as segundas são cascas ocas e que estas sem aquelas dispersam-se, quando não se tornam mesmo violentas e destrutivas.

A fase de desconfinamento e de maior liberdade de movimentos que estamos a viver, passados quase dois anos de restrições e de contenção corpórea, poderia ser particularmente propícia para valorizar e promover a inteligência da fé por meio de “ritos e preces”, segundo o espírito do Concílio Vaticano II (particularmente relevante é o n.48 de Sacrosanctum Concilium), tendo presente que “ritos e preces” não são instrumentos exteriores que remetem para um conteúdo interior, mas, sim, lugares visíveis e tangíveis, linguagens elementares e complexas pelas quais a graça efetivamente se realiza e os mistérios da fé realmente se dizem. A forma de os bem realizar dirá a força que neles se dá.

Num tempo que tanto valoriza o corpo, os sentidos, as “performances”, a nossa atenção cristã insiste em concentrar-se sobretudo no conteúdo nocional, na moção sentimental ou na norma moral. E está bem, porque são dimensões incontornáveis da experiência crente. Porém, não são suficientes.

Por isso, só o exercício de nos irmos perguntando – tantos ministros, como fiéis – pelo lugar mais ativo que pode ser dado ao corpo, aos olhos que veem e aos ouvidos que ouvem, mas também ao olfato e ao gosto que apreciam, e, ainda mais, ao tato que põe em contacto espontâneo com a presença, umas vezes reconfortante, outras vezes inquietante, da beleza e da bondade, já seria um grande passo. Sim, convoque-se a inteligência, desperte-se afeto, implique-se a vontade, mas não à custa da negligência da mediação do corpo, com os seus sentidos, as suas múltiplas linguagens e dinâmicas, as suas fragilidades e energias. Tal como o ministro ordenado investe justamente na preparação da homilia, caber-lhe-ia dedicar não menos cuidado ao tom da voz, à autenticidade dos gestos, à leveza ou dramaticidade dos movimentos, à força espiritual dos espaços e das formas plásticas. Tal como o fiel espera por palavras bem ditas de comentário à Palavra de Deus que lhe iluminem a mente e aqueçam o coração, dê igual atenção aos gestos bem feitos que lhe toquem, firam e impliquem o corpo. Pode acontecer que participe com uma inteligência muito desperta, mas com um corpo muito indolente; que queira sentir, mas sem querer dar o corpo a esse manifesto. A ser assim, não estaria inteiramente presente. Porque a Palavra disse-se e continua a dizer-se como carne que se vê, se ouve, se aprecia, se toca, pela qual nos reconhecemos vistos, escutados, apreciados, tocados. Do mesmo modo, quando se tem presente que a ação ritual é estruturalmente comunitária, não se deixará de cuidar dos tempos e dos modos que melhor exprimam a participação ativa de cada membro vivo deste corpo orgânico e da assembleia como um todo. Cuidar do rito litúrgico como ação de mediação corpórea entre a Igreja e o Senhor, não deixará de promover a arte e o ofício de celebrar ativamente, que dizem respeito, não somente a cada ministro, mas igualmente a cada fiel e a cada comunidade.

Num tempo de palavras eventualmente excessivas e gastas, talvez de vertigem de experiências que consomem quem as consome, o rito litúrgico oferece-se como ato quotidiano e elementar de “resistência” humana, espiritual. Pelo envolvimento do corpo, com os seus sentidos e as suas múltiplas linguagens, recorrendo à palavra necessária e suficiente, diz a fé da Igreja na Páscoa do Senhor Jesus enquanto a realiza no tempo presente de indivíduos e de comunidades, como graça que salva a vida. Diferente das explicações, seduções ou manifestos, quem sabe se não irá mais justamente ao encontro de novas interrogações e buscas, sedes e disposições presentes em tantos e tantas que se revelam mais sensíveis ao toque do que à demonstração, mais atentos à impressão deixada pela forma como se faz do que pelo conteúdo daquilo que se diz. Dar um copo de água fresca a quem tenha sede não dirá mais do que explicar as virtudes da água?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.