No passado recente, proliferaram os discursos acerca da privatização da religião. Em termos gerais, muitos concluíam, a partir da evidência de que as referências religiosas se tornaram plurais nas sociedades modernas, que a religião tinha, como único lugar, a consciência e as práticas familiares. Em termos políticos, imaginou-se um espaço social neutro sob o ponto de vista religioso. A esse imperativo de ordem política correspondeu a interiorização, por parte dos crentes, de uma religiosidade cercada pelo desejo de construção de si. É esse tipo de interioridade religiosa que alimenta hoje muitas das dinâmicas religiosas: leituras, peregrinações, retiros, etc. São mais raros os contextos em que a fé seja explicitamente mobilizadora de uma causa social ou reforce as motivações para a construção da nossa experiência coletiva.
Paradoxalmente, esta navegação para o interior de si, que descreve, preponderantemente, as tendências religiosas, é contemporânea da celebração pública da notoriedade de certas personalidades do campo religioso. Recorde-se que a Times Magazine, em 1975, elegeu Madre Teresa de Calcutá como personalidade do ano – ela que, em 1979, veio a receber o prémio Nobel da Paz. Ou, ainda, que algumas das personalidades, que assumimos como bandeira da luta pelos direitos humanos, na história contemporânea, são atores com uma forte inscrição religiosa: Gandhi, Luther King, Desmond Tutu, Dalai Lama. E, ainda, no quadro de receção global de João Paulo II, as montagens mediáticas tendiam a apresentá-lo como «grande sacerdote dos direitos humanos», um «perito em humanidade». Bento XVI foi celebrado como um dos intelectuais de referência nos debates sobre as grandes questões da nossa contemporaneidade. Francisco, em 2014, estreou-se na capa da edição americana da revista Rolling Stone, num contexto de reconhecimento da sua capacidade para influenciar os debates na cena pública. Hoje, da esquerda à direita, de norte a sul, muitos citam o Papa Francisco acerca das coisas que importam a todos. Num tempo de erosão do crédito das instituições religiosas, algumas personalidades religiosas tornam-se, assim, símbolos de valores amplamente partilhados, sem que a dimensão confessante das suas motivações inviabilize a possibilidade de serem ouvidos por muitos. Pelo menos, desde João Paulo II, os Papas católicos contribuíram, de facto, para a construção da opinião pública – particularmente, nessa modalidade recente que é a opinião pública global.
A crónica do Frei Bento não entrou no amplíssimo mercado contemporâneo das espiritualidades do bem-estar interior. Arriscou permanecer na inquietude de um discurso cristão dirigido a toda a «cidade», cultivando um género novo – o da crónica de opinião como teologia.
Recentemente, a Universidade do Minho concedeu o doutoramento honoris causa a uma personalidade singular na sociedade portuguesa. Falo do Frei Bento Domingues, que mantém, desde 1992, no jornal Público, uma crónica de opinião. A presença regular de uma voz explicitamente cristã na Imprensa de referência não é caso único. Mas a longevidade dessa voz, no seu registo próprio, é certamente uma singularidade. A crónica do Frei Bento não entrou no amplíssimo mercado contemporâneo das espiritualidades do bem-estar interior. Arriscou permanecer na inquietude de um discurso cristão dirigido a toda a «cidade», cultivando um género novo – o da crónica de opinião como teologia. As suas crónicas apelam ao reconhecimento de um duplo movimento: por um lado, a reivindicação, na sociedade portuguesa, da possibilidade da teologia cristã como discurso público, participando nos debates que constroem o espaço social comum; por outro, a afirmação da necessidade de uma «opinião pública», dentro das comunidades de pertença religiosa, registo em que são chamadas a dizer as razões daquilo em que acreditam. Nesta dupla via, as crónicas de Frei Bento Domingues podem ser lidas como um laboratório onde é possível descobrir a oportunidade de um discurso público que não se alimenta da defesa de particularismos religiosos, mas antes descobre, numa tradição crente, a força crítica necessária à construção de uma cidadania partilhada e aberta. Dou-lhe a palavra, em jeito de homenagem: «Demarcar-se, sem desprezar, profetizar sem condenar, definir um território original sem se fechar ao intercâmbio democrático, manter-se próximo e respeitador das vítimas, muitas vezes trágicas, do sofrimento e da injustiça, abster-se de formular uma cosmovisão global ou uma explicação totalitária, assinalar a insatisfação dos desejos e do vazio no coração da vida pessoal e da história, não como factos negativos, mas como incitamentos à criação, podem ser tarefas da teologia.»
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.