A estonteante verdade da Primavera

O livro “Primavera” de Ali Smith é uma poderosa evocação da frágil mas sempre bem-vinda irrupção da vida.

Uma das mais vivas memórias da minha infância são os incêndios florestais. Nos longuíssimos dias do não menos longo mês de agosto, poucas eram as tardes em que não se descobria no horizonte uma coluna de fumo e não se ouvia a sirene dos bombeiros. Criança pequena ainda, este ritual de contornos macabros pesava sobre o quotidiano das férias na Beira Baixa e tinha o condão de azedar os dias de sol de brincadeiras e banhos na ribeira. Percebo hoje como os incêndios eram sempre mais longe e menos perigosos para mim e para os meus do que podia então intuir. Na altura, os fogos eram uma espécie de deus mau, cujas teofanias ritmavam as férias do Verão, me transiam de medo e deixavam um rastro negro de destruição e lamento.

Talvez porque me sentisse e a todos os que me rodeavam impotentes diante das chamas que varriam os serros e ameaçavam pessoas, animais, casas, sempre nutri uma secreta admiração pelas plantas e árvores que nasciam nas florestas queimadas nas semanas e meses do outono e inverno seguintes. Penso sobretudo nas acácias ou mimosas. Nas palavras dos adultos, eram “praga” e “malditas”, mas eu saboreava em silêncio esta (nunca tão bem dita!) vingança fria, em tons de verde e amarelo. Sim, claro!, as cinzas tinham ganho a partida, mas não tardava a perceber-se que haveria prolongamento, que ainda sobrava à terra força para recomeçar. E isto quando ainda mal tinham secado as lágrimas.

Talvez porque me sentisse e a todos os que me rodeavam impotentes diante das chamas que varriam os serros e ameaçavam pessoas, animais, casas, sempre nutri uma secreta admiração pelas plantas e árvores que nasciam nas florestas queimadas nas semanas e meses do outono e inverno seguintes.

Nestas semanas de Páscoa, tenho voltado às sensações que este milagre vegetal me inspirava muito por culpa (“feliz culpa”!) do livro da escritora escocesa Ali Smith intitulado “Primavera”. Publicado em 2019, “Primavera” (Spring) é o terceiro volume de um “quarteto das estações” (Seasonal Quartet): “Outono” (Autumn) saiu em 2016, “Inverno” (Winter) em 2017 e “Verão” (Summer) – o último volume – em 2020. Cada um dos membros do “quarteto” é um romance independente e o que os une é, sobretudo, um desejo de sondar os anos que se seguiram ao Brexit e à eleição de Donald Trump.

“Primavera” é simultaneamente o mais sombrio e o mais corajosamente aberto dos primeiros três volumes da tetralogia. Richard, que é realizador e que acaba de perder a melhor amiga e colaboradora de longa data, atravessa a mais profunda das depressões e descobre-se a lutar com as memórias e os seus fantasmas numa estação de comboios vazia no extremo norte da Escócia. Outro dos protagonistas é Brit, uma mulher inglesa que trabalha para uma empresa de segurança num centro de detenção de imigrantes ilegais e vive alienada num quotidiano onde as rotinas normalizaram a violência e os abusos. É neste aqui e então que irrompe uma misteriosa rapariga de doze anos, Florence, que leva os adultos – e a própria Brit – a decidirem contra o seu melhor julgamento e a fazerem o que não queriam. A narrativa adquire com esta nova personagem uma certa tonalidade surrealista e, no que penso entender do romance de Smith, é precisamente graças a essa qualidade “enfabuladora” de Florence que os “realismos” brutais do mundo de Richard e Brit perdem a solidez sombria que os caracteriza. Florence é, como o seu nome indica (do latim “florens, florentius”: “florescente”), a possibilidade do novo e do verde – da “primavera”! – num mundo habitado pelas cores cinzentas do luto, da apatia, da indiferença, do “normal”. É também e só uma criança de doze anos e, por isso, mais indício que certeza, mais sinal que garantia: nada está decidido; só está dada a possibilidade de um recomeço. Nesse sentido, é com a ironia simbólica de culminar o romance no pequeno lugar de Culloden, onde se desenrolou a última batalha terrestre em solo britânico (abril de 1746), que Smith deixa o leitor. Afinal, é ainda aí, é ainda na batalha decisiva pelas nossas histórias, que estamos.

Experimentalista na forma, “Primavera” da escocesa Ali Smith é um romance de corte pascal. Não há aqui nem exuberância, nem triunfalismo. Há possibilidade e há vida além desta “vida” que é tantas vezes sonambulismo individual e coletivo. É bom que a literatura nos lembre que há abril: «Mês de deuses mortos que ressuscitam. (…) Passe-se por qualquer arbusto ou árvore em flor e é impossível não o ouvir, o zumbido do motor, a nova vida que já labora, a fábrica do tempo.» (p. 298).

Primavera

Ali Smith

Traduzido por Manuel Alberto Vieira

Elsinore

2019

298 páginas

 

Fotografia de capa: Rodrigo Cabrita

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.