A educação do olhar

Estes e outros exemplos mostram, infelizmente, que a arte de tirar fotografias se foi perdendo com a banalização do ato. Em rigor, não apenas perdemos os objetos que fotografamos como também desprezamos o ato de fotografar.

Quando chegar setembro e nos perguntarem como foram as férias, é óbvio que teremos fotografias para mostrar, além das que eventualmente já tivermos partilhado nas redes sociais. Os smartphones ampliaram muitíssimo a possibilidade de guardarmos recordações das férias, pois os telemóveis hoje em dia são também eficientes máquinas fotográficas permanentemente acessíveis, que nos permitem tirar sem grande preocupação uma quantidade avassaladora de fotografias e, mais tarde, escolher as melhores. Imbuídos de uma sabedoria popular que nos diz que uma imagem vale por mil palavras, documentamos amplamente as nossas férias com fotografias, acreditando que contarão, só por si, uma narrativa fiel destas semanas, e chegamos ao final das férias com a memória do smartphone no limite da sua capacidade. Porém, há uma sabedoria muito menos popular que nos diz duas verdades que a voragem da omnipresença do smartphone oblitera: primeiro, uma coisa é a memória do telemóvel e outra coisa é a nossa memória; segundo, as palavras que se associam para criar narrativas não são substituíveis por fotografias, qualquer que seja a sua quantidade.

Há evidências científicas que revelam que «fotografar objetos faz com que não os recordemos tão bem quanto se simplesmente os observássemos», porque «experimentar algo através da câmara não é o mesmo que fazê-lo de forma direta, sem nos distrairmos a pensar no foco e no enquadramento, podendo ver o objeto com todo o seu contexto, mais além dos limites de um ecrã»[1]. Nos dias de hoje, diante de um objeto que queremos guardar na memória, pensamos primeiramente no telemóvel para o fotografar e o gesto instintivo que fazemos é o de pegar no aparelho e apontar para ele, abdicando da riqueza do contacto direto e demorado com o objeto da fotografia e abdicando de uma visão mais ampla do contexto. Já não nos move a preocupação de guardar coisas na nossa memória, porque entregamos essa responsabilidade ao smartphone, mas, ironicamente, é mais fácil esquecer aquilo cuja memória delegamos noutros dispositivos, como também acontece, por exemplo, com a memória dos caminhos quando confiamos no GPS para nos orientar.

O problema das fotografias das férias é o problema das fotografias de um modo geral na atualidade. Os meus vizinhos no estádio pegam no smartphone quando intuem que uma jogada se tornará perigosa e veem-na através do ecrã à espera do momento certo para acionar o obturador. Nas imagens que vi dos concertos da Taylor Swift em Portugal, eram as luzes dos ecrãs dos telemóveis que sobressaíam acima das cabeças dos espetadores. Na esplanada em que comecei a pensar nesta reflexão para o Ponto SJ, uma mãe fotografou repetidamente a filha, cujo cabelo acabara de apanhar com um lindíssimo laço cor-de-rosa. Dos grupos de turistas que passeiam por Lisboa, sobressai sempre o selfie stick de alguém que vai tirando fotografias de modo mais ou menos aleatório. Estes e outros exemplos mostram, infelizmente, que a arte de tirar fotografias se foi perdendo com a banalização do ato. Em rigor, não apenas perdemos os objetos que fotografamos como também desprezamos o ato de fotografar. Neste sentido, tendo a não concordar com Héctor Ruiz Martín quando escreve que nos distraímos «a pensar no foco e no enquadramento», pois pensar na melhor forma de registar um episódio ainda revela a preocupação em garantir a melhor imagem dele.

Com a mãe que fotografava a filha na esplanada, estava também a avó. De mãos no regaço, a senhora contemplava e escutava com atenção a neta, que palrava alegremente, de faces rosadas do calor, sobre qualquer coisa que tinham feito juntas de manhã. Talvez a avó saiba que é esta a maneira mais segura de guardar consigo a memória da neta. Ou talvez saiba que estes momentos são fugazes e que não os devemos perder com distrações. A propósito deste episódio, lembrei-me do conhecido diálogo entre duas personagens do filme The Secret Life of Walter Mitty. Sean O’Connell, um fotógrafo cujo papel é desempenhado por Sean Penn, encontra-se nos Himalaias para fotografar o leopardo-das-neves, um animal que raramente é visto por seres humanos. É no exato momento em que Sean tem na sua objetiva o esquivo felino que Walter Mitty (representado por Ben Stiller, que também é o realizador) o encontra finalmente, procurando obter uma cópia de uma importante fotografia. Consciente da singularidade do evento e percebendo que Sean se demorava a contemplar o animal, Walter pergunta-lhe: «When are you going to take it?». A resposta de Sean é uma lição para nós, que temos dedos ligeiros para acionar obturadores: «Sometimes I don’t. If I like a moment, for me, personally, I don’t like to have the distraction of the camera. I just want to stay in it». Compreensivelmente confuso, Walter ainda pergunta «Stay in it?», ao que Sean responde: «Yeah. Right there. Right here». Esta pareceu-me ser a sabedoria daquela avó.

O tempo das férias é um tempo privilegiado para educarmos o olhar, para acedermos à permanência no momento, desenvolvendo a capacidade de apreciar a beleza e a excelência, que Christopher Peterson e Martin Seligman incluem no seu catálogo das forças do caráter e virtudes, definindo-a como a habilidade de encontrar, reconhecer e ter prazer com algo encantador e comovente no mundo físico e social do dia a dia. Para o alcançar, é necessário estar efetivamente atento, com um novo olhar, à beleza física, às competências ou talentos e à bondade moral das pessoas. Um bom exercício de férias para treinar esta atenção é estar atento às coisas ou às pessoas do quotidiano, a que, de tão regulares, nunca prestamos atenção, tentando encontrar neles uma beleza desconhecida. Segundos antes do diálogo que transcrevemos, Sean já havia dito a Walter que «beautiful things don’t ask for attention». Apropriarmo-nos desta lição seria a primeira tarefa do TPC de férias. A segunda seria a do estado de atenção. A terceira seria a de querer permanecer no momento em modo monotasking, como tão habilmente nos mostram quer a avó na esplanada a apreciar a neta quer Sean a apreciar um leopardo-das-neves.

O tempo das férias é um tempo privilegiado para educarmos o olhar, para acedermos à permanência no momento, desenvolvendo a capacidade de apreciar a beleza e a excelência, que Christopher Peterson e Martin Seligman incluem no seu catálogo das forças do caráter e virtudes, definindo-a como a habilidade de encontrar, reconhecer e ter prazer com algo encantador e comovente no mundo físico e social do dia a dia.

Estando de férias, há menos desculpas para não darmos tempo à lentidão e à demora que estas tarefas nos exigem, mas, ainda assim, será necessário um esforço consciente para não nos deixarmos levar pela rapidez que é própria mesmo do tempo de férias, para não nos deixarmos tomar pelo medo de estarmos a perder alguma coisa enquanto o fazemos (conhecido pelo acrónimo inglês “FOMO” – Fear Of Missing Out) e para não levantar logo o telemóvel, começando a disparar fotografias sofregamente. Se encontramos nas férias um objeto, uma paisagem, um episódio, uma pessoa que queiramos guardar, o que devemos fazer é apreciá-la, deixando que ela se acomode na memória, de forma desinteressada, porque a apreciação da excelência e da beleza deve transcender os interesses do eu. Saberemos que o estamos a fazer bem se sentirmos crescer dentro de nós o que apenas vive na lentidão: a admiração, o assombro, a elevação e, mesmo que apenas mais tarde, o desejo de nós próprios melhorarmos e de contribuirmos de alguma maneira para o bem comum. Depois, se assim o entendermos, podemos dedicar tempo a enquadrar o objeto, a focá-lo, a ver qual a melhor luz, etc. A fotografia – porque será seguramente apenas uma – que daí resultar nunca será uma entre tantas.

Se educarmos o olhar de modo a apreciarmos a beleza e a excelência, e as fotografarmos com a devoção que lhes é devida, é possível que cheguemos a setembro e consigamos fazer das férias uma narrativa que não se fique por um slideshow acompanhado de apontamentos emotivos isolados. Com escreve Byung-Chul Han, «a recordação não é uma repetição mecânica daquilo que se viveu, mas antes uma narração que tem de ser continuamente reproduzida de novo, uma e outra vez. […] As histórias criam laços entre as pessoas, uma vez que promovem a empatia. As histórias criam comunidades»[2]. Uma sequência de fotografias no Instagram, se não tiver na sua origem a demora da vivência de um momento narrável que as fotografias apenas ilustram, mesmo que esteja pejada de likes, está condenada a morrer diante do cansaço que o excesso provoca.

Uma sequência de fotografias no Instagram, se não tiver na sua origem a demora da vivência de um momento narrável que as fotografias apenas ilustram, mesmo que esteja pejada de likes, está condenada a morrer diante do cansaço que o excesso provoca.

Com o olhar educado deste modo, se aos episódios da vida associarmos fotografias que os convoquem, encontraremos nelas a aura própria das obras de arte, que se vinculam a uma existência única – o aqui e agora da sua produção – na qual se cumpre a sua história. Se decidirmos permanecer no momento sem fotografias, como faz Sean e a avó da esplanada, descobriremos o sentido da letra da música de fundo da cena seguinte no filme, que nos aconselha a abandonar «the flickering screen» e nos avisa repetidamente «Don’t let it pass» (que é o título da música dos Junip). Impedir que os ecrãs luminosos nos façam perder o melhor do verão está literalmente nas nossas mãos.

 

[1] Héctor Ruiz Martín, Los Secretos de la Memoria (Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2022), 129.
[2] Byung-Chul Han, A Crise da Narração (Lisboa: Relógio D’Água, 2024), 14-39.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.