A educação da crítica: é preciso cultivar o nosso jardim

Posto isto, parece-me que a educação da crítica poderá afastar os alunos de três males: tornarem-se profissionais da queixa, assumirem uma pose ética e definirem projetos de vida marcados pela negatividade.

O protagonista do romance Cândido ou o Otimismo[1] viveu comodamente no castelo do Barão Thunder-ten-tronckh até ao dia em que foi apanhado pelo próprio Barão a beijar a sua filha com uma paixão marginal atrás de um biombo. Enfurecido com o jovem Cândido, que se dizia ser filho bastardo da sua irmã, é o Barão quem o expulsa do castelo aos pontapés, terminando assim – logo no primeiro capítulo do livro – a sua vida de conforto e segurança. Além de se separar da sua amada Cunegundes, Cândido vê-se ainda privado das lições do perceptor do castelo, o famoso professor Pangloss, que defendia a tese de que o mundo em que vivemos é o «melhor de todos os mundos possíveis», pois nele não há efeito sem causa. Com uma vida tão alheia à maldade e ao sofrimento humanos, esta visão otimista da existência era inquestionável aos olhos de Cândido, o que fez dele um discípulo seguidista. Contudo, os ensinamentos que o protagonista recebe de Pangloss, inspirados no otimismo de Leibniz, vão ser satirizados – com um exagero caricatural – nos restantes vinte e nove capítulos do livro através das extraordinárias peripécias por que passa Cândido, que o colocam diante da maldade humana em toda a sua extensão e diversidade. Numa perspetiva pedagógica, vamos assistindo ao longo dos capítulos ao processo de aprendizagem do protagonista, que, contactando sucessivamente com as mais incríveis atrocidades, acabará por pôr em causa a filosofia otimista que aprendeu, ao ponto de a descrever como «a mania de defender que tudo está bem quando está mal». Mas é preciso esperar pela última frase do livro para vermos Cândido a construir o seu próprio conhecimento, indo além daquela crítica sobranceira e inconsequente. No capítulo final, depois de Pangloss constatar, em linha com a sua doutrina, que o encadeamento de todos os acontecimentos por que as personagens passaram constitui «o melhor dos mundos possíveis», Cândido responde-lhe «Muito bem dito […], mas é preciso cultivar o nosso jardim». A partir deste insight de Cândido e do processo de aprendizagem que lhe está subjacente, poderíamos concretizar toda uma didática do pensamento crítico, uma competência a que o discurso educativo contemporâneo tem dado muita importância. Esta competência é, aliás, considerada prioritária pelos empregadores [2], contudo, na sociedade da indignação, como aquela em que vivemos, há muitas evidências de que parece estar a ficar esquecida a ponderação do pensamento, estando a crítica a crescer no terreno árido da leviandade. Cresce a crítica sem pensamento, a indignação sem compromisso. No papel que lhe cabe no desenvolvimento do pensamento crítico, a escola deve cuidar também da educação da crítica.

Ao reconhecer que o raciocínio do seu mestre Pangloss está bem apresentado, mas que é necessário «cultivar o nosso jardim», Cândido revela a aprendizagem de que viver apenas no ócio do exercício filosófico não nos põe a salvo do sofrimento. O trabalho é indispensável à felicidade, como lhe ensinam as palavras da personagem do velho turco: «o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade». Na mesma linha, Cândido revela ter aprendido também que, ao contrário do que propõe a filosofia do seu mestre, o encadeamento natural dos acontecimentos não nos conduz necessariamente ao melhor dos mundos possíveis. Não podemos limitar-nos a assumir uma atitude passiva e a aceitar o que a sorte nos dita, porque esse modo de vida não afastará a maldade. Devemos, pelo contrário, esforçar-nos por desempenhar um papel ativo e influir nos eventos da nossa vida («cultivar»), desenvolvendo os nossos dons («o nosso jardim») ao serviço da comunidade («nosso jardim», no contexto, poderá também designar uma realidade de que toda a comunidade beneficia com o contributo de cada um). Cândido aprende, portanto, que a condição de possibilidade de uma vida feliz está em pôr o talento de cada um ao serviço da comunidade.

Devemos, pelo contrário, esforçar-nos por desempenhar um papel ativo e influir nos eventos da nossa vida («cultivar»), desenvolvendo os nossos dons («o nosso jardim») ao serviço da comunidade («nosso jardim», no contexto, poderá também designar uma realidade de que toda a comunidade beneficia com o contributo de cada um).

O processo de aprendizagem de Cândido cumpre dois requisitos que reúnem elevado consenso entre diferentes modelos pedagógicos: é uma pedagogia centrada no papel do aluno como construtor do seu saber (o mestre Pangloss não está presente na maior parte dos eventos de aprendizagem por que o protagonista passa), e é uma pedagogia que incorpora uma forte dimensão prática (Cândido experiencia empiricamente episódios que serão decisivos para o insight final). O devir da narrativa mostra-nos, todavia, que estes dois requisitos não são garantia de sucesso, pois, se assim fosse, a primeira circunstância em que sofre as consequências da maldade humana seria suficiente para se dar a aprendizagem de Cândido. Mas não é o caso. Mesmo depois de sair do ambiente confortável em que vivia, que lhe vedava a possibilidade de experimentar vivências que pudessem validar o seu conhecimento, e mesmo depois de deixar de ouvir as lições do seu mestre Pangloss, que não abriam espaço ao desenvolvimento do pensamento crítico, Cândido, diante de sucessivas experiências atrozes que tornariam pessimista o mais empedernido otimista, continua a não ser capaz de pôr em causa os ensinamentos do mestre, lamentando-se inclusivamente várias vezes por não ter consigo o seu professor para o ajudar a compreender a realidade. Podemos interpretar esta demora de duas maneiras.

A primeira: a lentidão de Cândido em atingir o conhecimento resulta do facto de não ter sido ensinado por Pangloss a analisar informações para validar teorias ou para as reformular. Nos dias de hoje, dir-se-ia que este professor não desenvolveu com o aluno a competência do pensamento crítico. Esta leitura é acertada, mas dela retiramos mais elementos válidos para nós, professores, do que para a definição de uma didática do pensamento crítico. Se é verdade que devemos promover esta competência junto dos nossos alunos, o que esta leitura nos ensina é que devemos, em primeiro lugar, exercitá-la em nós próprios e nas nossas verdades, não só para as validar, mas também para sermos modelos. Neste âmbito, o mestre de Cândido é um perfeito desastre como professor. Mesmo perante evidências contrárias, Pangloss continua a defender a sua primeira opinião, pois, como ele próprio afirma: «sou Filósofo, não me convém andar a desdizer-me», acabando por reconhecer, no último capítulo, que continuava a defender as suas posições «mesmo não acreditando em nada», apenas porque em tempos as defendeu. Não admira que deste modelo de professor tenha resultado o seguidismo de Cândido.

A segunda: a lentidão de Cândido é inerente ao método [3] seguido. A vagarosa evolução do protagonista-aluno revela que a aprendizagem não se dá por meio de uma atividade pontual, antes exige uma ação contínua e repetitiva. Dessa atividade do aluno, faz parte «o desejo de procurar, a paciência para duvidar, o empenho para meditar, a lentidão para afirmar» , para que se possa analisar de forma lógica, factual e sistemática um problema em contraste com diferentes perspetivas (que se deseja conhecer genuinamente). Se considerarmos o processo de aprendizagem do protagonista como uma aplicação (não planificada) do pensamento crítico, teremos de reconhecer que a lentidão é, na verdade, um parâmetro inerente ao método e não uma contingência apenas atribuível a fatores externos (como as limitações do professor ou do aluno). O pensamento crítico é efetivamente moroso, pois exige do sujeito uma investigação racional e disciplinada das suas experiências. Portanto, é centrado no sujeito, é experimental e é moroso. A morosidade é a condição para se consolidarem os saberes. A crítica de uma ideia, de um conceito, de uma teoria, de um projeto, em síntese, a crítica de qualquer proposta será tanto mais válida quanto mais rico for o processo de questionar e validar os conhecimentos que lhe subjazem. O caminho de Cândido em direção à crítica do otimismo do seu mestre é extenso porque ele ensaia essa crítica em contextos de índole diversa (a guerra, os desastres naturais, a intolerância religiosa, a promiscuidade, o exotismo do Novo Mundo, a utopia do Eldorado) e porque contacta com pessoas muito diferentes a quem tem a oportunidade de apresentar as suas ideias (o velho turco, o dervixe, Martinho, a velha, os seis estranhos), contrastando muitas vezes nessas conversas a sua visão com outras visões (anabatismo, calvinismo, maniqueísmo). Em Cândido ou o Otimismo, o conhecimento constrói-se porque o aprendiz é parte ativa na aprendizagem, porque tem vivências que lhe permitem contrastar a sua mundividência com outras mundividências, mas sobretudo porque o aprendiz dedica tempo ao processo. Sem a paciência para duvidar e a lentidão para afirmar, sobrevém apenas a crítica.

Se considerarmos o processo de aprendizagem do protagonista como uma aplicação (não planificada) do pensamento crítico, teremos de reconhecer que a lentidão é, na verdade, um parâmetro inerente ao método e não uma contingência apenas atribuível a fatores externos (como as limitações do professor ou do aluno). O pensamento crítico é efetivamente moroso, pois exige do sujeito uma investigação racional e disciplinada das suas experiências.

Esta lentidão é um problema na sociedade da indignação, dado que a vida nela é célere e não é compaginável com o aborrecimento característico dos processos demorados. O que nós privilegiamos é a superficialidade das análises e a imediatez dos resultados. As dilações que encontramos são quase sempre definidas pelos contornos da procrastinação e não da reflexão. Além disso, cada vez mais entregamos competências tipicamente humanas, como o raciocínio e a criatividade, às rápidas máquinas de inteligência artificial, contribuindo desse modo para que essas mesmas competências definhem no homem. Nesta modernidade já mais vaporífera do que líquida, os jovens, pouco habituados a encontrar informações em textos, com pouca experiência na análise lógica de raciocínios e mal preparados para construir e desenvolver argumentos, ou seja, sem disponibilidade para a lentidão que essas tarefas exigem, tornam-se dependentes da única verdade a que podem ter acesso: a que lhes é ditada pelos sentimentos do «eu». Ou, pior ainda, vivem reféns de discursos demagógicos que, sem se aperceberem, são incapazes de questionar e que tomam como seus. Sem o substrato da capacidade reflexiva, o pensamento crítico confunde-se, assim, com o altamente tóxico hábito de criticar, às vezes chamado, de forma elogiosa, “espírito crítico”, um modo de proceder centrado quase exclusivamente na emotividade do «eu», que não raras vezes culmina na indignação violenta. Nestes “espíritos críticos”, o movimento da indignação começa logo na crítica, isto é, começa no que deveria ser o culminar de um processo racional, que fica por fazer. Na sociedade da indignação, só há crítica, não há pensamento. Na sociedade da indignação, a verdade está sempre do lado do «eu», pois o critério de verdade está assegurado pelo que o «eu» sente. A emotividade torna desnecessária a argumentação: as coisas são de determinada maneira porque é dessa maneira que o «eu» sente. Daí que seja frequente, nos dias de hoje, cruzarmo-nos com o cuidado com a autoestima como critério dominante nas relações humanas. Quando alguém diz que se sentiu humilhado com as palavras de outra pessoa, sentindo a sua autoestima beliscada, não havendo tempo para a ponderação sobre o que se passou, avança-se imediatamente para a crítica sob a forma de um juízo de intenção, e a vontade de humilhar passa a ser a «verdade». Como é evidente, é importante acompanhar a pessoa que diz sentir-se humilhada, porque, mesmo sem ter havido intenção de humilhar, ela sente-se desse modo, mas o facto de ela o sentir não significa que tenha havido efetivamente uma humilhação. No mesmo sentido, quando alguém diz que a resolução do problema das alterações climáticas passa por esvaziar os pneus dos SUV, pouco importa confirmar a afirmação com dados ou validar a pertinência da solução: fazer parte da onda crítica do movimento indignado sobrepõe-se ao pensamento. Na sociedade da indignação, a aprendizagem está centrada e fechada no «eu»: não há experiência e muito menos há lentidão para o contraste. Neste terreno, é compreensível que floresça o seguidismo de discursos populistas.

Na sociedade da indignação, a aprendizagem está centrada e fechada no «eu»: não há experiência e muito menos há lentidão para o contraste. Neste terreno, é compreensível que floresça o seguidismo de discursos populistas.

Posto isto, parece-me que a educação da crítica poderá afastar os alunos de três males: tornarem-se profissionais da queixa, assumirem uma pose ética e definirem projetos de vida marcados pela negatividade.

Em primeiro lugar, fará com que não se tornem profissionais da queixa, ocos rebeldes sem causa. Frequentemente a crítica e a indignação – não apenas nos mais jovens – têm um fim nelas próprias, e é por isso que, por vezes, chamamos – acertadamente – birra a este modo de estar. Mas a crítica com sentido de verdade e a indignação genuína não têm o fim nelas mesmas. Pelo contrário, exigem o compromisso de cultivarmos o nosso jardim, o compromisso de usarmos os nossos talentos para sermos consequentes em relação ao que defendemos. Logo, o pensamento crítico não só não começa na crítica como não termina nela. Na verdade, o pensamento e a crítica são os movimentos que permitem o acesso à indignação comprometida, ou seja, à ação. Infelizmente, nos dias de hoje, como escreve Andrés García Inda [5], «tudo merece a nossa indignação, mas nada merece o nosso sacrifício. É essa a lógica do compromisso indolor». Se não trabalharmos a dimensão do compromisso da crítica, condenaremos os nossos alunos à fraqueza existencial de apenas conseguirem criticar tudo sem assumirem sacrifícios, à fraqueza de ficarem enredados no ciclo da indignação fechada sobre ela mesma. Na educação da crítica, o que se pretende é que os alunos cresçam do mesmo modo que Cândido cresce, que passa da crítica infértil e sobranceira da frase «a mania de defender que tudo está bem quando está mal» para uma crítica comprometida com uma proposta de melhoria: «muito bem dito, […] mas é preciso cultivar o nosso jardim». O compromisso é o cerne da educação da crítica. Se assim não for, arriscamo-nos a formar adultos que se fazem anunciar pelo fogo fátuo da crítica e que se afastam deixando um lastro de toxicidade. Serão os profissionais da queixa, seres que, como não sabem bem o que fazer, encontram na queixa um modo de estar na vida. Ou, na realidade, não querem fazer nada, porque assim escondem a ausência de talentos ou escondem a falta de vontade de servir a comunidade.

Se não trabalharmos a dimensão do compromisso da crítica, condenaremos os nossos alunos à fraqueza existencial de apenas conseguirem criticar tudo sem assumirem sacrifícios, à fraqueza de ficarem enredados no ciclo da indignação fechada sobre ela mesma.

Em segundo lugar, afastará os alunos do que Andrés García Inda chama a “pose ética”: «comportamentos ou estratégias pessoais de indignação moral ou de denúncia de vícios alheios como forma de exibir a sua própria virtude e de procurar assim um reconhecimento por parte dos demais». A postura ética é um triste passo além do estatuto de profissional da queixa, pois acrescenta-lhe um caderno de encargos egocêntrico, radicalmente alheio à lição de pôr o talento ao serviço da comunidade, que é a música de fundo da educação da crítica. Esse desviar de atenções de si mesmo é uma fraqueza facilmente identificável, sobretudo porque adensa o lastro de toxicidade.

Em terceiro lugar, se evitarmos que a identidade dos alunos se vá definindo em torno desta negatividade, não permitiremos a construção de projetos de vida cujo sentido dependa da existência daquilo com que eles não se identificam. Esse sentido para a vida, além de pouco genuíno, embota, seguramente, o dom da gratidão, na medida em que é difícil agradecer a existência do que nos provoca a indignação. Lamentavelmente, não faltam exemplos disto mesmo.

A educação da crítica encontra a síntese da sua pedagogia na expressão «cultivar o nosso jardim»: uma pedagogia centrada no sujeito (e nos seus talentos) e não num seguidismo acéfalo de outras vozes; uma pedagogia assente na experiência, no conhecimento e no contraste com saberes distintos; uma pedagogia que privilegia a lentidão propícia à reflexão, à dúvida e à argumentação; uma pedagogia do compromisso, que concebe a indignação como um campo fértil para a ação ao serviço da comunidade. Sem isto, continuaremos a elogiar o espírito crítico dos petizes como se fosse uma coisa boa em si.

 

Referências:

[1] Romance de Voltaire, pseudónimo de François-Marie Arouet.

[2] Cf. The Future of Jobs Report – 2023, World Economic Forum.

[3] Uso livremente o termo “pensamento crítico” para designar uma competência, mas também um método.

[4] Excerto de um texto de Francis Bacon, um filósofo e ensaísta britânico do século XVI.

[5] Andrés García Inda, La Dulce Militancia, Bilbao: Mensajero, 2020

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.