Entrámos em 2023 com uma ameaça a pesar sobre as democracias – o forte agravamento das desigualdades económicas. Entre ricos e pobres, entre sobretudo os muito ricos e a restante população, as diferenças de riqueza são agora brutais. Mas, antes de encarar a situação atual, é útil uma breve perspetiva histórica sobre este problema.
Até à revolução industrial – que se iniciou em finais do século XVIII – existiam enormes diferenças económicas e sociais. O “elevador social”, isto é, a possibilidade de subir de classe, era muito restrita. Apontavam-se duas hipóteses de subida na escala social: a carreira das armas e a via eclesiástica, de padre podia aspirar-se a chegar a bispo. E os militares bem sucedidos podiam aspirar a alguma ascensão social. Eram o “rouge” e o “noir”, título de um célebre romance de Stendhal.
Quem nascia pobre tinha escassas probabilidades de não morrer pobre. O nível de vida dos aristocratas era muito superior ao do comum dos mortais, mas não era alvo de contestação. Parecia fazer parte de uma ordem natural da sociedade, que poucos ousavam contrariar. E convém não esquecer que nesses tempos antigos a sociedade não considerava a escravatura algo condenável.
Mais tarde, quando o “terceiro estado” – burgueses, comerciantes, profissionais liberais, etc. – começou a atingir um certo grau de riqueza passou a exigir os mesmos direitos de que usufruíam as outras classes, nomeadamente a aristocracia e o clero. Foi a Revolução Francesa.
A questão social
As classes baixas e desde logo os operários industriais tardaram mais de um século a obterem alguma proteção social. Muitos passaram a viver pior do que quando estavam no campo, onde, além do mais, tinham o enquadramento da comunidade rural.
Afastados dos campos e da atividade agrícola, os operários da revolução industrial viviam em condições de trabalho de enorme exploração, que envolvia homens, mulheres e crianças. Era a questão social, que marcou o século XIX.
Por causa da questão social a Igreja católica perdeu nessa altura muitos fiéis. Só em 1891 surgiria uma encíclica do Papa Leão XIII sobre a condição operária, a “Rerum Novarum”.
Entretanto, desenvolveu-se a contestação política ao capitalismo. A alternativa era o socialismo, incluindo o comunismo.
O comunismo conseguiu implantar-se na Rússia, um país relativamente atrasado. E vigorou aí até 1989. Ora é difícil encontrar hoje quem considere ter sido um êxito o comunismo soviético. Afinal, aquela alternativa ao capitalismo revelou-se bem pior do que o capitalismo. O mesmo se diga de outras encarnações do comunismo, como é o caso da China. Não foi por aqui que a exploração económica foi ultrapassada, ao mesmo tempo que esses regimes sacrificaram a liberdade das pessoas.
O capitalismo e o Estado social
Os que defendem uma alternativa socialista ao capitalismo defrontam hoje um problema: não existe no mundo uma alternativa dessas concretizada no terreno, que pudesse servir de modelo e de guia aos promotores do socialismo. Existem, sim, sociedades capitalistas com maior ou menor intervenção corretiva do Estado, a par de sociedades coletivizadas onde os pobres não vivem bem.
Em resultado das lutas sindicais e também do sufrágio universal, que se foi impondo ao longo da primeira metade do século XX, as forças do mercado foram em alguma medida limitadas por medidas sociais. O capitalismo selvagem foi até certo ponto travado por aquilo a que chamou o Estado Social.
No fim da II guerra mundial registou-se, sobretudo na Grã-Bretanha e nos países que lançaram a integração europeia, França e Alemanha nomeadamente, um grande impulso à tomada de medidas de alcance social.
Nos Estado Unidos a depressão económica dos anos 30 pôs a nu a grande vulnerabilidade económica e social da população trabalhadora. Muita gente perdeu tudo ou quase tudo o que possuía.
Nos Estado Unidos a depressão económica dos anos 30 pôs a nu a grande vulnerabilidade económica e social da população trabalhadora.
O presidente Franklin D. Roosevelt tomou posse em março de 1933 e procurou lançar algumas medidas de apoio social aos mais afetados pela depressão. Mas esse apoio nunca viria a ter a dimensão que teve depois na Europa, com o “modelo social europeu”.
Problemas do modelo social europeu
Hoje o “modelo social europeu” encontra-se ameaçado pelo envelhecimento da população europeia. São cada vez mais as pensões de reforma pagas pelos descontos de cada vez menos trabalhadores no ativo. Surgem dúvidas e preocupações com a sustentabilidade financeira da segurança social.
Hoje o “modelo social europeu” encontra-se ameaçado pelo envelhecimento da população europeia. São cada vez mais as pensões de reforma pagas pelos descontos de cada vez menos trabalhadores no ativo. Surgem dúvidas e preocupações com a sustentabilidade financeira da segurança social.
Reformar a segurança social, para não colapsar financeiramente, parece um imperativo. Mas politicamente existem muitas resistências à mudança, como é exemplo a oposição de inúmeros franceses à alteração da idade da reforma de 62 para 64 anos – apesar de uma mais alta esperança de vida.
Pela primeira vez desde há muitos anos, a geração dos filhos tende agora a viver pior do que a geração dos seus pais. O que promove um clima de pessimismo e descrença sobretudo entre os jovens. Um clima que é aproveitado por políticos populistas, que apostam no descontentamento.
A informática trouxe benefícios para alguns, mas deixa para trás aqueles que não têm preparação para lidar com computadores. E os sindicatos não conseguiram adaptar-se às novas circunstâncias e perderam força negocial.
Tributar os mais ricos
Depois da II guerra mundial registou-se uma tendência para agravar a tributação dos mais ricos. Só que essa tendência parece ter-se esfumado, na Europa e sobretudo nos EUA.
Chegou-se a um ponto em que vários multimilionários pedem publicamente para que os governos aumentem os seus impostos. Esses super-ricos terão tido consciência da injustiça fiscal em causa e alguns porventura terão receado uma convulsão social se a situação se prolongar. Mas não se enxergam medidas fiscais que atenuem as escandalosas desigualdades do presente
Ora as desigualdades acentuaram-se dramaticamente nos últimos tempos. 10% da população mundial possui 76% de toda a riqueza. Na década recente os mais ricos, 1% da população, arrecadaram quase metade de toda a riqueza gerada. E a riqueza dos multimilionários aumentou mais nos últimos dois anos, com a pandemia e a inflação, do que nos 21 anos anteriores. As alterações climáticas vieram agravar ainda mais as desigualdades.
Ora as desigualdades acentuaram-se dramaticamente nos últimos tempos. 10% da população mundial possui 76% de toda a riqueza. Na década recente os mais ricos, 1% da população, arrecadaram quase metade de toda a riqueza gerada.
Perante este acentuar das brutais desigualdades as opiniões públicas das democracias mostram-se passivas. Há, até, quem desvalorize o problema, criticando um alegado sentimento de inveja nos que tomam posição contra as desigualdades.
Esmoreceu o sentido de justiça social
Decerto que existem na humanidade numerosas diferenças. Uns são mais inteligentes do que outros, alguns são mais cultos, outros menos, e por aí fora. Quem pretendesse atingir uma igualdade de riqueza económica entre todos só poderia fazê-lo instaurando uma ditadura violenta, um regime totalitário.
Outra coisa será não considerar naturais e por isso intocáveis desigualdades que ofendem a dignidade da pessoa humana. Ou combater uma brutal concentração da riqueza nas mãos de um pequeno grupo de pessoas – o que, mais tarde ou mais cedo, tira sentido à democracia política e ameaça a própria paz social.
O individualismo liberal não valoriza a dimensão coletiva das pessoas. Ignora, ou parece ignorar, quanto a personalidade de cada um fica a dever à cultura e aos valores da sociedade e do país onde se nasce e se cresce. Uma pessoa isolada e sem preocupação pelos outros – ao nível familiar, local, nacional e até universal – é alguém privado de uma parte importante da sua humanidade.
O individualismo liberal não valoriza a dimensão coletiva das pessoas. Ignora, ou parece ignorar, quanto a personalidade de cada um fica a dever à cultura e aos valores da sociedade e do país onde se nasce e se cresce.
Por isso nas sociedades civilizadas se procura, talvez mais em palavras do que em ações, apoiar as classes mais desfavorecidas. Não só através de sistemas fiscais progressivos, como de investimentos de caráter social, da educação à habitação. Mas não há dúvida de que a política fiscal deve ser decisiva na redução das desigualdades.
Infelizmente, parece ter deixado de o ser. O sentido de justiça social, que levou a reformas do capitalismo, mostra-se esmorecido. Assim se vai espalhando a “economia que mata”, nas palavras do Papa Francisco.
Ora travar o avanço impressionante das desigualdades económicas surge, hoje, como uma condição para se viver em sociedades decentes e saudáveis. É uma grande ameaça à paz social e à democracia. A economia social de mercado tem que fazer prova de vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.