A democracia não se salva só com factos

É com perguntas mais definitivas e controversas do que aquelas a que nos habituámos - sobre a relação da pessoa com a natureza, com o “estrangeiro”, o consumo, os seus mais próximos - que se encontram as fontes das divisões contemporâneas.

Na era da “pós-verdade” que vivemos, a luta pela democracia liberal e pelas suas causas (globalização, direitos humanos, alterações climáticas) é muitas vezes interpretada como uma luta de factos. A estratégia, difícil de cumprir, é possível de delinear: “Combater o populismo com realismo, as mentiras com factos, a distorção com objetividade e a impunidade com combatividade”, como se pode ler na página do novo (e muito promissor) Instituto +Liberdade. Porque se acredita que os factos e a ciência estão do lado da democracia liberal.

Claro que até os mais devotos defensores das democracias admitem que o seu sistema tem problemas, e que existem legítimos descontentamentos. Mas, no final, mantêm a sua inabalável convicção de que os factos, quando objetivamente comunicados e apreendidos pelos cidadãos, jogam a favor da defesa da democracia liberal. Será que bastam factos, realismo e objetividade para resolvermos a polarização e a crise democrática ocidental?

Ninguém disse isso. Aliás, muitas vezes aponta-se para a necessidade de apostar noutras áreas como a educação, a literacia e a instrução universitária, considerados aliados essenciais nesta batalha. Mas com que intuito? Também aí, para que a pessoa se torne mais instruída e necessariamente mais capaz de apreender os factos e, finalmente, capaz de reconhecer o sucesso da democracia liberal e a objetividade das suas causas. Por isso, no final do dia parece-me que sim, achamos que é sempre uma questão de conhecimento dos factos.

Será que bastam factos, realismo e objetividade para resolvermos a polarização e a crise democrática ocidental?

Esta convicção tem um efeito contrário inevitável: o de considerarmos que quem não está do lado dos factos é necessariamente ignorante ou primário. Porque quem é que, ciente dos factos, pode desafiar as vantagens da democracia liberal? Só pessoas desconhecedoras ou iletradas que, ou não conhecem os factos, ou não têm capacidade para os assimilar. Por isso, a solução deve ser factos, instrução e pesquisas Google para cima deles, dos ciganos ao aquecimento global, dos refugiados às PPPs, do Brexit ao Trump. Se não funcionar, é repetir a dose e encher de fact checks os políticos que apoiam.

Já andamos nisto da pós-verdade e das fake news há uns anos, pelo que já chegámos à altura de nos perguntarmos se a estratégia dos factos tem funcionado. Julgo que podemos responder com alguma factualidade que não: a divisão não está a diminuir, antes pelo contrário. E porquê? Em traços largos, vejo três razões principais: 1) a desinformação está sempre um passo à frente e tem muita força, sobretudo na internet; 2) os factos nem sempre são convincentes; e 3), a que mais me interessa, é que isto é mais do que uma questão de factos ou de objetividade.

Antes de me concentrar no terceiro ponto, acho importante deixar claro que considero estas três matérias, para além de extremamente complexas, igualmente urgentes e necessárias. Sem qualquer uma delas, a democracia liberal continua coxa.

Sobre isto ser mais do que uma questão de factos. Deixem-me usar um exemplo científico. Foi feito um estudo sobre as opiniões dos americanos relativamente às alterações climáticas (AC). O universo de participantes foi dividido em quatro grupos: 1) conservadores com 12.º ano, 2) conservadores com grau universitário, 3) democratas com 12.º ano e 4) democratas com grau universitário. Se partirmos do pressuposto que a discórdia relativamente às alterações climáticas é, na base, uma questão de conhecimento/ignorância relativamente aos factos científicos, então podemos prever que: as pessoas menos instruídas, especialmente no grupo republicano, tenderão a ser o grupo mais cético relativamente às AC. E também podemos prever que as pessoas mais instruídas dos dois partidos estarão menos polarizadas e mais de acordo entre elas do que os seus semelhantes menos instruídos. Porque mais instrução igual a mais factos, logo igual a menos ceticismo.

Ou seja, o universo dos “espertos” é mais polarizado do que o universo dos “burros”, e certamente mais tóxico se os fechassem a todos numa sala. Isto apesar de terem a mesma capacidade de acesso e compreensão de factos.

Não foram esses os resultados no universo republicano. Enquanto que no lado democrata se verificou esse padrão (mais instrução igual a menos ceticismo), os resultados no universo republicano demonstraram o contrário: maior a instrução, maior o ceticismo relativamente às AC. Para além disso, o fosso entre os republicanos e democratas instruídos foi duas vezes maior do que entre os grupos dos menos instruídos. Ou seja, o universo dos “espertos” é mais polarizado do que o universo dos “burros”, e certamente mais tóxico se os fechassem a todos numa sala. Isto apesar de terem a mesma capacidade de acesso e compreensão de factos.

Logo, a instrução e os factos não resolveram a questão. Neste caso, até aumentaram a polarização sobre o tema. Mas se não se resolve com factos e instrução, resolve-se com o quê? Se nem o acesso à ciência resolve uma questão tão fundamental quanto as alterações climáticas – ou os direitos humanos ou tanta outra coisa – o que pode resolver?

A minha resposta: a discussão política, contudo não o género de discussão técnica a que estamos habituados. Temos de ir além da objetividade e entrar no campo das convicções éticas, morais e religiosas. Dos valores políticos e espirituais. Afinal, para além da técnica, é “só” isso que nos resta: discutir valores como a liberdade, a justiça, a igualdade ou o bem. Sem a vertente moral, a objetividade dos factos é incapaz de gerar consensos e proteger a democracia liberal.

Acredito que é com perguntas mais definitivas e controversas do que aquelas a que nos habituámos – sobre a relação da pessoa com a natureza, com o “estrangeiro”, com o consumo, com os seus mais próximos, consigo própria – que se encontram as fontes das divisões contemporâneas. E por isso é também nessas respostas que vejo o caminho daqui para fora. Não é mais na tecnocracia evidence-based que, apesar de bem-intencionada, nos trouxe até aqui.

Bem sei que a minha resposta, para além de abstrata, é estranha e roça o desagradável. Falar de valores em política soa a fundamentalismos e absolutismos. Habituámo-nos a separar a política da ética e a colocá-las em planos diferentes. Eu estou convencido de que a política é pouco mais do que ética e, de resto, olhemos à volta: a tribalização e polarização que vivemos ultrapassa a técnica e os factos. Empanturra-se da desinformação e do populismo, mas não é neles que nasce.

O primeiro combate joga-se no campo das convicções morais. E é aí que os defensores da democracia liberal têm perdido, por falta de comparência.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.