Às vezes, dou por mim a pensar que é fácil cair nesta ideia — tão presente em tantos de nós — de que, se formos sempre correctos, se não falharmos, então estaremos mais perto de Deus. A ideia de que, se fizermos tudo “certo”, se formos boas pessoas, se cumprirmos os mandamentos, se não tropeçarmos, então aí sim, Deus poderá olhar para nós com agrado, como quem premeia o bom comportamento. É quase como se a vida espiritual se desenhasse como um escadote, onde, degrau a degrau, à medida que vamos cumprindo o que nos é pedido, subimos em direcção ao Céu, e cada erro fosse um escorregão que nos devolve para mais longe.
Esta imagem — embora pouco dita — vive, de facto, dentro de muitos de nós. E talvez não seja difícil perceber de onde vem. Durante a infância, no processo natural de crescimento, fomos educados por pais e figuras próximas que, com todo o amor e com o melhor que sabiam, nos colocaram limites, corrigiram, ensinaram e mostraram caminhos. E é perfeitamente compreensível que, ao longo dessa aprendizagem, se tenha formado em nós a ideia de que o amor — esse amor que tanto desejávamos — estava de alguma forma ligado à nossa capacidade de fazer bem, de cumprir e de corresponder. Que o afecto vinha como resposta ao nosso desempenho e que a aceitação era consequência da nossa obediência. E mesmo que isto não tenha sido dito directamente, muitas vezes foi assim que o lemos. Não por mal, mas porque era o que o nosso coração conseguia compreender na altura.
O que acontece é que esta lógica, tão enraizada e tão humana, pode facilmente ser projectada sobre Deus. Sem nos darmos conta, acabamos por viver como se o Seu amor estivesse condicionado à nossa perfeição. Como se a Sua proximidade dependesse de nunca errarmos, de nunca cairmos, de estarmos sempre à altura. Mas, quanto mais olho para isto, mais sinto que não é por aí.
Não é por acaso que Jesus se confrontou tantas vezes com os fariseus — aqueles que se dedicavam à lei, que sabiam todas as normas, que conheciam os preceitos e que os procuravam cumprir até ao mais pequeno pormenor. Não me parece que o fizessem por maldade; acredito sinceramente que muitos deles queriam agradar a Deus. Mas o que é certo é que, no fim, foi precisamente essa estrutura de rigidez e de zelo legalista que criou o ambiente que acabou por levar Jesus à cruz. É duro reconhecê-lo, mas talvez seja necessário: talvez tenha sido a norma, quando se tornou absoluta, que matou o amor. Talvez tenha sido o peso da pureza, da ortodoxia, da correcção religiosa, que acabou por fechar os olhos à presença viva de Deus, feita carne, no meio do povo.
Sem nos darmos conta, acabamos por viver como se o Seu amor estivesse condicionado à nossa perfeição. Como se a Sua proximidade dependesse de nunca errarmos, de nunca cairmos, de estarmos sempre à altura. Mas, quanto mais olho para isto, mais sinto que não é por aí.
E se isso aconteceu com Jesus — se o próprio Filho de Deus foi rejeitado em nome da lei — porque haveríamos nós de pensar que agora seria diferente? Esta lógica continua a repetir-se sempre que se impõe a norma antes do encontro, sempre que a rigidez se sobrepõe ao coração, sempre que o medo de falhar fala mais alto do que a liberdade para amar. E isto não acontece apenas em decisões grandes ou em momentos religiosos. Muitas vezes manifesta-se nas coisas mais pequenas e nos gestos mais banais do dia-a-dia. Quando numa casa se discute porque o comando não ficou pousado no sítio “certo”, quando alguém se irrita porque o copo ficou ligeiramente fora do lugar, ou quando nos magoamos uns aos outros por não termos feito exactamente aquilo que se esperava. Como se a ordem valesse mais do que a presença, como se o detalhe fosse mais importante do que a relação. Nessas horas, talvez sem querermos, acabamos por sufocar o que havia de vivo entre nós, trocando o encontro pela correcção e o vínculo pela exigência.
Nada disto significa que não haja lugar para exigência, ou que as normas não tenham valor. Não se trata de relativizar tudo, nem de viver sem referências. Mas talvez seja importante lembrar que as normas só fazem sentido depois. Que não são o ponto de partida, mas sim o fruto de algo mais profundo. Que servem para proteger uma relação já existente, não para a iniciar. A ética e a moral, tal como a Igreja as apresenta, ganham verdadeiro sentido quando nascem como consequência de uma adesão interior, de um encontro e de uma experiência vivida de Deus. Nunca como condição para que essa experiência possa acontecer.
É por isso que me faz tanto sentido aquela pergunta dos discípulos de Emaús, depois do encontro com Jesus no caminho: “Não nos ardia cá dentro o coração?”. Porque é aí que tudo começa. Não nos manuais, nem nos discursos bem estruturados, nem sequer na doutrina — mas naquele momento quase imperceptível em que algo dentro de nós se acende. Pode ser só um instante. Pode até parecer irrelevante à primeira vista. Mas, quando o reconhecemos, sabemos que foi real.
E talvez o caminho da fé passe exactamente por aí: por aprender a escutar esse pequeno fogo interior, essa faísca que nos faz parar por dentro, que nos faz sentir vivos e que nos dá a intuição de que Deus passou por ali.
E talvez o caminho da fé passe exactamente por aí: por aprender a escutar esse pequeno fogo interior, essa faísca que nos faz parar por dentro, que nos faz sentir vivos e que nos dá a intuição de que Deus passou por ali. E, quando isso acontecer, talvez a melhor coisa a fazer seja parar e perguntar com simplicidade: o que foi que me tocou? Com quem estava? O que é que me despertou? Que circunstância havia à minha volta? De onde vinha eu? Que espaço se abriu?
Não para analisar ou controlar — mas para cuidar e para dar continuidade. Para não deixar perder essa presença discreta, mas transformadora. Porque é dessa chama, por mais pequena que pareça, que pode nascer e renascer tudo o resto. É a partir desse lugar que, pouco a pouco, nos vamos tornando mais livres, mais inteiros, mais próximos daquela bondade de que tanto se fala — não por força de vontade de adesão à regra, mas porque algo em nós mudou.
Não há fórmulas nem há garantias. Mas há esta intuição: que a fé não é um projecto de perfeição, mas uma resposta frágil, humana e real ao amor que já nos foi oferecido. E que, se o coração ardeu — ainda que só por um segundo — talvez seja aí que Deus nos está a chamar.
E por isso talvez nos possamos perguntar: quando foi a última vez que sentimos isso? Um toque, um calor, um movimento interior — por mais pequeno que tenha sido. Quando foi a última vez que o nosso coração ardeu, mesmo que só por um instante? Não precisamos de o explicar nem de o compreender por inteiro, basta reconhecê-lo com honestidade. Porque se houve ali qualquer coisa que nos tocou por dentro, então é provável que tenha sido Deus. E se foi Deus, então vale a pena irmos atrás disso. Porque essa corda que vibrou no nosso coração — essa corda que Ele próprio tocou — é a única que vale mesmo a pena puxar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.