“A casa da alegria”, o mais recente livro de Gabriel Magalhães

Para que a evangelização seja eficaz, para que a vivência da fé nos transforme realmente, faz-nos “tanta falta a alegria”.

O mais recente livro de Gabriel Magalhães, A casa da alegria. Reflexões sobre o cristianismo e tempo na cultura europeia (Paulinas, 2019) ajuda-nos a assumir, a aprofundar e a viver a fé cristã no mundo contemporâneo, ao mesmo tempo que nos abre, a nós cristãos, à esperança de acreditar no futuro. Por um lado, o número de praticantes e de batizados diminui significativamente em relação aos números das antigas sociedades cristãs que definiram outrora o continente europeu. E isso pode deixar-nos desolados, a ponto de nos deixarmos cair na tentação de ficar presos à nostalgia do passado. Por outro lado, muitas são as sensibilidades, espirituais, litúrgicas ou meramente humanas e culturais, dos membros da Igreja hodierna. E, se o cristianismo se faz “de inumeráveis caminhos, pelo menos tantos quantas as pessoas, e essa sua imensa multiplicidade constitui uma das suas riquezas”  (p. 10), então a diversidade na vivência da fé, por parte de indivíduos e de grupos dentro da Igreja, não deve ser temida. No seu belo estilo literário, Gabriel Magalhães propõe-nos a metáfora de uma cidade com muitas moradas, casas ou residências. Um dos desafios que nós cristãos enfrentamos hoje, enquanto Igreja, consiste precisamente em assegurar a unidade desta cidade, qual Igreja situada no meio do mundo, através de uma comunhão eficiente que respeite a riqueza das suas múltiplas moradas. Consciente desse desafio, Gabriel Magalhães não sonha com uma Igreja homogénea ou multiforme. Por isso, sem pretensões de teólogo, e sem a segurança de quem se julga absolutamente certo e de caminho concluído, ele apresenta, num tom humilde, “estas ideias como uma casa, apenas uma, das muitas residências possíveis para quem deseja habitar na grande cidade do Espírito” (p. 10).

Sem a segurança de quem se julga absolutamente certo e de caminho concluído, Gabriel Magalhães apresenta, num tom humilde, “estas ideias como uma casa, apenas uma, das muitas residências possíveis para quem deseja habitar na grande cidade do Espírito”.

A forma a partir da qual Gabriel Magalhães quer aprofundar e viver a sua fé passa por ir aprendendo a habitar as tensões próprias a uma tradição viva. É assim que ele pensa a religião cristã. Referindo-se ao “diálogo complicado entre tradição e novidade no seio do cristianismo” (p. 29), o nosso autor procura evitar tanto a armadilha “da novidade pela novidade” como a tentação de um “tradicionalismo rançoso” (pp. 31-32); nem uma Igreja, ou uma morada, “revolucionária” ou “esquerdista”, nem uma residência “conservadora” ou meramente “tradicional” (p. 54). Ambas as opções seriam como que portas abertas para a divisão de uma cidade cuja diversidade, em vez de se tornar numa riqueza apetecível ao mundo circundante, facilmente se degeneraria em rancor, conflito e tristeza.

Gabriel Magalhães situa-se no nosso contexto histórico presente: o “momento atual do nosso querido continente europeu”(p.159). Assumindo a “matriz cristã que tanto procuramos, construindo uma civilização da descoberta, sempre preocupada com novos horizontes” (p. 167), o nosso autor considera que a identidade da Europa reside precisamente na vontade de ser livre “porque o nosso património cristão nos instala nessa nobreza”(p. 168). É por isso que acaba por pedir “aos católicos europeus que nunca desist[am] da sua fé, mas que também não a impu[nha]m aos irmãos. Confiem [antes] nas brisas do Pai, porque é assim que Ele gosta de atuar, e essa aragem suave vale mais do que qualquer tempestade” (p. 196).

Gabriel Magalhães escolhe um caminho que arrisca na incerteza de quem parte sem grandes seguranças em relação ao que deva ou vá acontecer ao longo do percurso: um cristianismo itinerante, poder-se-ia dizer.

A sua opção, apesar de tudo, tem o mérito de se centrar na pessoa de Cristo e no Seu encontro pessoal através da oração: “O seguidor de Jesus, no momento de orar a sós, é o maquinista da sua alma, o piloto da sua navegação, do seu voo, sendo que a paisagem, o oceano, o céu desta viagem são Deus e a humanidade inteira” (p. 100). À medida que vamos percorrendo as páginas deste livro, podemos pressentir a formação no âmbito das letras por parte do seu autor. As referências literárias abundam ao longo do livro e entrelaçam-se com elementos hagiográficos, de forma a se insistir, por exemplo, sobre a importância da oração. É nesse sentido que surge a alusão a um dito de São José Maria Escrivá para quem “a primeira audiência do dia era para Jesus.” (p. 101).

A alegria, parece-me, surge ao centro do caminho proposto por Gabriel Magalhães. Talvez a célebre frase de Rahner segundo a qual “o homem piedoso do futuro será um ‘místico’, alguém que experimentou algo, ou deixará de o ser complemente” (no original alemão: »Der Fromme der Zukunft wird ein ›Mystiker‹ sein, einer, der etwas ‘erfahren’ hat, oder er wird nicht mehr sein.«, in Rahner, Karl: »Frömmigkeit heute und morgen«, in: Geist und Leben 39 (1966), S. 335) se possa traduzir da seguinte forma: “ou somos capazes de acolher a alegria, ou não seremos autênticos na nossa fé”. É por isso, para que a evangelização seja eficaz, para que a vivência da fé nos transforme realmente, que nos faz “tanta falta a alegria” (p. 193).

 

Citando a Epístola de São Paulo aos Gálatas – mais concretamente o verseto “Já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gal 3, 28) –, Gabriel Magalhães convida-nos a uma unidade respeitadora da diversidade, a uma Igreja onde a comunhão entre eu e o outro, o diferente, ou entre nós e os outros, é possível: “este sermos todos um no abraço comovido que damos ao nosso Salvador constitui uma bela definição do Reino de Deus” (p. 182).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.