A aventura da iniciação desportiva em Portugal

A posição que venho defendendo é que a especialização precoce num determinado desporto pode ser uma exceção, mas não deve ser a regra.

Identificar jovens talentos e acompanhá-los ao longo do seu desenvolvimento é um assunto de debate em todo o mundo. Portugal não escapa à regra. Desde janeiro de 2016 que faço parte de um grupo de trabalho que procura desenvolver novas abordagens na identificação de talentos desportivos. Grosso modo, pretendemos seguir no tempo jovens desportistas da região do Porto, mapear as características do seu crescimento individual, ligando capacidades e habilidades individuais com as exigências do treino e da competição, integrando ainda na análise a posição das famílias, dos treinadores e dos clubes. Ou seja, tentaremos perceber de que modo as famílias e os clubes/treinadores promovem a prática desportiva junto dos mais novos e como encaram e orientam a sua participação na competição desportiva.

Na sombra das inúmeras conversas que tenho mantido com os pais e com os treinadores destes jovens atletas, fica sempre a cintilar uma velha questão para a qual não tenho uma resposta definitiva: Como se faz um campeão?

Hoje em dia, muitos pais, e mesmo alguns treinadores, acreditam que a melhor maneira de promover a excelência desportiva e de “fazer campeões” passa pelo envolvimento precoce dos jovens com a prática sistemática e exclusiva de uma única modalidade desportiva. As características da amostra do estudo em que estou envolvido parecem confirmar esta questão, se atendermos à média de idades dos indivíduos avaliados (13 anos) e ao tempo que praticam em exclusividade um único desporto (6 anos).

Confesso que não me surpreendem estes números. Não me surpreendem porque, atualmente, os pais temem que os filhos se atrasem em relação aos outros jovens da sua idade e acreditam que a especialização precoce (o envolvimento desde muito cedo com um só desporto) resolve todos os problemas; e neste processo (desastroso?) há treinadores que também gostam de “ajudar à festa”, sobretudo porque também aspiram ser reconhecidos publicamente pelas vitórias dos “seus campeões”.

A posição que venho defendendo desde há muitos anos é a seguinte: a especialização prematura num determinado desporto pode ser uma exceção, mas não deve ser a regra.

Sempre que possível, desafio os pais e os treinadores/professores a encorajarem os mais jovens a praticarem diversos desportos para assim desenvolverem múltiplas habilidades motoras; e só depois dessa experiência diversificada – e por isso mesmo enriquecedora -, ajudarem as crianças a optar pelo desporto que mais as encanta. Para reforçar esta posição recorro habitualmente às minhas experiencias desportivas de pré-adolescente, nascido e criado na cidade do Porto nos anos 50/60. Não são exemplos por aí além, são apenas os meus!

Aquele tempo passou a correr e com sorte lá o consegui encher com muitos jogos de bola (e de outros tipos) disputados em estádios improvisados no pátio de casa dos meus pais, na eira do vizinho lavrador, nas ruas e vielas sem trânsito, no recreio da escola primária, no átrio da velha igreja e num ou noutro campo desportivo mais a sério, de terra batida ou cimentado às três pancadas. Com 10 anos já tinha disputado variadíssimos campeonatos das mais diversas modalidades. Muitos foram de futebol, claro; outros, de modalidades tão diversas como o mata (quando os pais nos obrigavam a jogar com as meninas), o hóquei em patins – jogado com sticks improvisados de troços de couve-galega – sempre que Portugal se envolvia com Espanha na disputa dos títulos mundiais, a casquinha (uma espécie de andebol jogado na rua, com cascas de laranja a servir de bola, e as portas de duas casas contíguas a servir de balizas), o voleibol jogado com os pés (atualmente designado de pé-vólei), com um muro baixinho a fazer as vezes de rede… Foram tantas as competições, tantos os campeonatos, que lhes perdi a conta. Isto para não falar doutros jogos, doutras disputas que misturavam corridas de bicicletas (corridas “mesmo a sério”), provas de saltos em altura e comprimento nas areias das casas “em construção”, mergulhos acrobáticos em tanques de rega, jogos de pião em campos saibrados e até (pasme-se) “Voltas a Portugal” com sameirinhas (caricas para quem não é do norte) durante todo o mês de agosto, competição que juntava amigos e primos e pais e tios e vizinhos de barraca, e mais o banheiro e muitos desconhecidos, nas praias da Foz e do Castelo do Queijo. Acreditem que não exagero. Olhem que até à macaca joguei…esse jogo “de meninas” que não me deixou qualquer sequela por o ter jogado, nem por ser um jogo “de meninas”.

Como na música do Fausto (O Barco vai de saída, 1982) esta era, de facto, uma VIDA BOA. Uma vida boa e uma completa AVENTURA, uma permanente descoberta. Uma vida “com tantos perigos…tantos medos…tantos sobressaltos, uma vida cheia de pecados, e por isso uma vida boa…aquela vida do PORTO, cheia de fugas e de muitos jogos”.

Aquando da entrada para o Liceu, as disputas em estádios improvisados reduziram-se e cresceram os momentos de atividades desportivas mais formais. Descobri o prazer de competir a nadar e a correr, percebi que o andebol e o hóquei em patins eram modalidades tão cativantes quanto o futebol e o ciclismo, e compreendi que ser guarda-redes era, afinal, tão divertido como ser defesa, médio ou avançado. Os locais de todas estas descobertas foram os Liceus e as Escolas, com os seus equipamentos desportivos extraordinários, os torneios e as competições que por lá aconteciam e a presença inspiradora e tutelar dos verdadeiros mestres da vida daqueles tempos: os Professores de Educação Física. Foram esses MESTRES que me entusiasmaram verdadeiramente pelo desporto e me revelaram o jogo pelo qual me apaixonei verdadeiramente e pelo qual troquei todos os outros: o basquetebol!

“I love this game”…tenho a certeza que todos conhecem este slogan publicitário da NBA. A paixão que tive pelo jogo foi, de facto, enorme e avassaladora. Provavelmente uma paixão semelhante à que muitos outros rapazes e raparigas da minha idade tiveram por outros jogos que não o basquetebol. Ao fim de tantos anos a ensaiar escolhas (como quem se envolve num namoro), lá nos decidimos pela “monogamia desportiva”, uns pelo voleibol, outros pelo andebol, outros pelo futebol, alguns pelo rugby. Eu escolhi o basquetebol, apaixonei-me (pratiquei-o durante mais de 20 anos), continuo-o a amá-lo e é por isso que ele tem um papel único na minha vida.

A partilha das minhas experiências desportivas de pré-adolescente tem servido para ajudar a alertar os pais e os treinadores para o facto da especialização precoce não ser garantia de uma carreira desportiva de sucesso; e tem servido também para defender a importância da prática de múltiplos jogos e desportos pelos mais jovens, uma aventura natural e simples que muito ajudou a dar sentido à minha vida.

Desconheço a existência de clubes e instituições desportivas ou outras organizações com uma oferta desportiva assim diversificada que inclua, por exemplo, basquetebol à segunda e quarta-feira, natação e atletismo à terça e quinta e futebol ao domingo. De resto, não sei se os clubes desportivos e outras instituições congéneres estariam disponíveis para uma oferta desportiva com esta configuração e temo que a sociedade não entenda de imediato o alcance de tal medida. A alternativa é, decididamente, a Escola, uma NOVA ESCOLA capaz de converter as aulas de Educação Física numa oferta desportiva diversificada e que passe a integrar irreversivelmente o desporto escolar no processo educativo nacional.

Qual é a dificuldade?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.