“Era o pai do colégio” (aluna do 12º ano)
“Ele dava-se completamente, de braços abertos. Não media o tamanho do seu amor.” (professor)
“Foi um exemplo para todos, era o educador perfeito” (jesuíta)
“Estava sempre lá” (ex-aluna)
Já passaram duas semanas e ainda não nos conseguimos acostumar. Como assim, o dia a dia no Colégio prossegue, sem termos entre nós o Sr. Alves, empurrando o seu carrinho cheio de coisas? Como assim, os meninos e meninas do segundo ciclo não terão atividades de horticultura ou o “dia da romã”? Como assim, as crianças do Jardim de Infância passarão pelo outono sem as vindimas?
E quem cuidará do aquecimento da igreja nos dias frios? Quem garantirá que as madeiras do pavilhão andam bem tratadas? Quem deixará na sala de professores os cestos de feijoa? Quem nos fará encontrar regada a horta da Primária, depois de um fim de semana de calor?
Seis décadas é muito tempo. São gerações e gerações de alunos, educadores e pais para quem o Jerónimo Alves era um ícone incontornável. Uma figura simples mas com uma força imparável, de estatura pequena mas que se destaca agora na fachada do colégio, numa fotografia de 10 metros de altura, com a legenda: “Obrigado, sr. Alves”.
É curioso como um homem leigo, pai de família (mulher, três filhos e quatro netas), deixou marca em tanta gente, de forma tão consensual, numa casa da Companhia de Jesus. Por isso mesmo se costuma dele dizer que era “quase um jesuíta”, com uma identidade que se foi fundindo com a essência deste Colégio e com a Companhia. Mas como veio ele parar aqui? Como foi ganhando o estatuto quase icónico que todos lhe reconheciam? Para procurar desenlear o novelo desta história, tenho andado a falar com várias pessoas (que depois me sugerem que vá conversar com múltiplas outras) procurando formar o mosaico de uma biografia invulgar. Comovi-me não poucas vezes, pois é transversal às narrativas de todos uma certa reverência perante alguém que inspirou pelo exemplo e que se excedia na arte do cuidado.
Em meados dos anos 60, o jovem Jerónimo Alves chega a Lisboa, enviado por um jesuíta, o padre Evaristo Vasconcelos, amigo do seu irmão Aníbal, na época a estudar no seminário. Nessa altura, já o senhor Alves era um homem casado, com uma filha pequena, dedicado à Igreja como sacristão (como já o fora o seu pai), na sua terra de Pinhal do Norte (Trás-os-Montes), onde se destacava como bom trabalhador. Reconhecendo nele as qualidades de honradez e dedicação que toda a vida o iriam caracterizar, o padre Evaristo propõe-lhe um trabalho no Colégio, para onde vem, primeiro sozinho, e pouco depois com a mulher e a filha, que inicialmente ficam a viver na “casa velha” (atualmente, a Cúria Provincial). Começa por entrar como ajudante dos prefeitos (mestres de disciplina), para orientar os alunos nos corredores e refeitório, mas, aliado próximo dos irmãos (jesuítas que não eram padres e se ocupavam de muitas funções de gestão dos espaços), vai assumindo cada vez mais responsabilidades. Nas palavras do Pe. Alberto Sousa sj, que, à época, ainda não era jesuíta e se lembra bem de o ter ido buscar a Santa Apolónia da primeira vez que chegou à capital, Jerónimo Alves torna-se aquela pessoa “que estava sempre em primeiro lugar quando era preciso alguém para uma tarefa”, graças à sua evidente entrega, honestidade e sentido do dever.
“Era o braço direito de tudo. Não se conhece um empregado com a dedicação do Alves. Não se pode, em tantos anos, apontar o que quer que seja à sua amizade ao Colégio, ao seu amor aos alunos”.
Jerónimo Alves torna-se aquela pessoa “que estava sempre em primeiro lugar quando era preciso alguém para uma tarefa”, graças à sua evidente entrega, honestidade e sentido do dever.
É certo que nunca deixou de adorar a sua terra, onde tinha uma grande vinha e dezenas de colmeias a que se dedicava das 5 da manhã às 11 da noite durante as férias de verão. Mas ao regresso, já em crise de abstinência depois de um mês longe da Estrada da Torre, com a família toda no carro, a abarrotar depois de uma viagem interminável desde Trás-os-Montes nos anos 70, o Sr. Alves tinha de parar no Colégio antes mesmo de chegar a casa, para ver se estava tudo bem. Imaginem-se os nervos da mulher, a D. Maria, estafada da viagem e a pensar nos filhos derreados e a precisar de banhos. Maria e filhos esses que toda a vida tiveram de prescindir de um grande pedaço do seu Jerónimo devido a esta dedicação sem medida ao Colégio, em cujos portões lhe bastava passar para logo ficar radiante e até parecer mais novo.
Com o tempo, a sua costela de homem do campo torna-se parte de uma forma de estar também como educador, e aparecem as colmeias, as aulas de horticultura (já nos anos 80!), as múltiplas atividades com as crianças a quem ele ensina os mistérios da natureza, das sementes, das abelhas, das azeitonas. Em maio, organiza a cresta do mel, com os meninos do jardim de infância, que são o seu encanto. Mostra-lhes como tirar os favos, como se raspam, e dá-lhos para chupar, para sentirem o milagre. Em setembro, traz às salas as cestas na véspera do dia da vindima, para as crianças as levarem, na manhã seguinte, escola acima até às videiras do jardim do CUPAV. Aí, fazem uma roda e vão seguindo as suas instruções acerca dos cachos a cortar, regressando às salas com as cestas repletas. Dois dias depois, ele reaparece com uma máquina antiga com que esmaga os frutos perante os pequenos olhares atentos, mostrando como fazer sumo de uva. Acompanha as atividades com cantigas tradicionais (quem não se lembra das “alegres vindimadeiras”?) que ensina a cantar e dançar, com o seu característico chapéu de palha na cabeça. Com uma “paciência de santo”, aliada à rigidez da disciplina “à antiga”, atravessa gerações de alunos – por vezes de avós, filhos e netos – que o recordam como uma presença dura (dizem os mais antigos), ternurenta (segundo os alunos de agora), e cheia de sabedoria.
Ao longo de décadas, o sr. Alves multiplica-se, conseguindo ser aquele que guarda o Colégio com os seus cães ferozes durante a noite e aquele que, muito discretamente, organiza ajudas para alguém mais carenciado que precise. É o que afugenta com a sua espingarda quem tenta ocupar o colégio no pós-25 de abril, quem estabelece acordos com gangues do bairro da Musgueira para que neste espaço não se toque, e aquele que conhece os alunos pelos nomes e lhes ensina a melhor técnica para descascar uma romã. É o fiel jardineiro que faz aparecer um batatal que ninguém plantou na horta da primária e aquele que, ao fim de semana, vem tratar dos animais das salas dos mais pequeninos e abre os portões, de manhãzinha, se houver algum ensaio para as festas. Ele é o que provoca gargalhadas mascarado de mulher no Carnaval e o grande recitador de poemas e de antigas lições do seu livro da primária, que ainda sabe de cor. É aquele que se apruma, de fato e gravata, em todas as ocasiões importantes, mas também o que rebenta num palavrão nortenho quando acha que os meninos semearam tudo mal. É aquele que leva o pão à comunidade dos jesuítas (onde desde há décadas tem um quarto seu, para poder mudar de roupa entre tarefas), o que tem bolas quando é preciso bolas e aquele que garante que a igreja esteja impecavelmente limpa nos dias da 1ª comunhão.
Exímio contador de histórias, revela um lado artístico que se manifesta até na forma como expressa a sua religiosidade, que alterna orações quase panteístas de bênção às plantas perante uma plateia de alunos, com a adoração regular perante o sacrário e um terço diário que não falha. É alguém que “vive da fé”, como algo íntimo, devocional e sobretudo privado.
Na comunidade dos jesuítas, à medida que se sucedem as gerações, vai assumindo o papel de um avô, que acompanha cada jesuíta mais jovem e se alegra por sentir que esta casa está bem entregue e que pode confiar. Mas custa-lhe sair de cena e, mesmo na fase final da sua vida, quer ser o primeiro a chegar às 7h da manhã ao Colégio. “Mas para quê, pai?”, pergunta-lhe a filha mais velha, preocupada. Ao que ele responde que tem de ser, que se o portão encravar só ele o consegue desbloquear, e outras desculpas (havia muitas!) para assegurar que está presente e é ele a abrir a porta. Por esta presença constante e pelo testemunho que dá com a sua vida, é sempre um dos convidados das turmas para as missas de quarta-feira, mesmo quando, já doente, tem de deixar as atividades regulares com os alunos.
As recentes obras no CUPAV foram para ele um duro golpe, com a sua horta desmembrada e os materiais salvos a custo, no seu carrinho de supermercado, onde vai levando, dia a dia, cada coisa para um novo destino ou um novo dono. Ainda assim, continua a projetar-se para a frente, planeando um transplante de vinhas e uma festa para celebrar os seus 89 anos. Como toda a vida dissera, o sr. Alves nunca seria homem de reforma ou de hobbies, nem imaginava uma vida sem trabalhar. Por necessidade, vai recorrendo à cadeira de massagens da comunidade, quando as dores já são muitas, mas “sempre bem-disposto, sem desanimar nem perder a força, atacando a vida mesmo na doença”, como contam as alunas que lá faziam voluntariado.
Mas no último dia de aulas do 1º período, com o seu fato dos dias solenes e um barrete de Pai Natal, veio ao refeitório dos mais pequenos despedir-se. Sabia que iria para a casa de saúde da Idanha e não quis deixar de dirigir umas palavras às crianças, aquelas em quem nunca encontrou maldade. Pediu que se fizesse silêncio e voltou a apelar, como tantas vezes fizera, para que se lembrassem de agradecer sempre tudo a Jesus. Disse-lhes que os iria ver crescer e que estavam no bom caminho, no “melhor colégio do mundo” e “com estas queridas” (as educadoras, a quem gostava de se dirigir assim).
Na missa do funeral, a igreja estava repleta de gente. Família, amigos, pessoas de todas as gerações e centenas de alunos, que não quiseram faltar. Todos se portaram bem, mesmo aqueles em idade difícil, porque todos perceberam que haviam tido o privilégio de testemunhar como se põe amor em cada gesto. Se é pelo exemplo que mais aprendemos e se o lema do colégio é “educar para servir”, ninguém como o sr. Alves foi melhor emblema vivo deste mote. Como dele disse o padre Alberto Sousa, tivemos connosco, ao longo de 60 anos, “o educador perfeito”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.