Um outro canto de Moisés

A liberdade de caminhar nos próprios passos implica o desamparo, a dúvida quanto à direção e o risco de decidir. Mas em tudo isto, Senhor, és tu o nosso chão, tu firmas os nossos pés e acolhes a nossa rota.

A liberdade de caminhar nos próprios passos implica o desamparo, a dúvida quanto à direção e o risco de decidir. Mas em tudo isto, Senhor, és tu o nosso chão, tu firmas os nossos pés e acolhes a nossa rota.

Senhor, és ainda a nossa força e o nosso canto. Temos ainda os olhos cingidos à tua memória, como os nossos pais. Eles contaram-nos do teu braço forte que liberta e nós pedimos “Contem-nos também do seu braço de ternura que nos aconchega”. Deles aprendemos como os socorreste quando chamaram o teu nome. Agora aprendemos a espera de ser atendidos. A pedagogia de uma esperança que nos molda e purifica.

Eles contaram-nos como o teu sopro abriu as águas, como a tua direita esmagou a mão que os sufocava. Como os conduziste na aridez sem que as roupas envelhecessem no corpo, sem que os pés inchassem, sem que os corações endurecessem além da tua misericórdia. Ainda assim – eles nos contam – desconfiados voltavam o rosto para Egito e diziam “Lá, ao menos…”. E tu, lento para a ira, respondias “Aqui há quanto precisas”.

E nós, como eles, tão cegos quanto assombrados pela tua luz. Tão confiantes quanto vacilantes. Tão débeis quanto firmes.

Somos uma deslocação, tal como os nossos pais no deserto. Por vezes um ponto desacertado no mapa, uma coordenada inexata. Talvez acesos do lado errado das manhãs, mas só para acordar a aurora. Acesos, contudo, na tua luz.

Se olhamos os nossos dias e vemos neles um ouro pálido, apenas o fazemos por esperar um brilho maior. O ouro da tua cidade, do lugar que nos preparas.

E tu ainda ergues o sol nas manhãs. Ainda penduras as estrelas, esse estranho modo de acender a noite. Ainda repetes “Conta-as porque a tua descendência será assim sem número”. Que lâmpada esta que acendeste em nós!

Ainda escutamos a mesma promessa renovada: um futuro de esperança, uma terra onde corre leite e mel. Onde além do alimento tu nos dás o sabor dos dias. Assim compreendemos como o teu amor vai além do óbvio: não nos dás apenas o que basta. Não queres que sobrevivamos apenas, mas que prosperemos na tua abundância. Reservaste-nos um ponto na história onde não nos dás apenas o pão que sustenta, mas a beleza que santifica e enobrece.

Mas quando, de olhos já atentos, nos abrimos às tensões do mundo, descobrimos também uma terra deserta e desolada, tão estéril quanto viúva. Ou então terra gasta, explorada até à secura, espremida até à ganância.

É aqui que nos lembramos de quem somos: filhos de uma promessa. E a promessa é a tensão. Já temos uma das mãos no seu cumprimento, que nos é ainda velado. Temos ainda a outra mão neste mundo que também nos deste. A primeira é a mão que toca a tua misericórdia: o teu amor preparou-nos a eternidade. A segunda é a mão que toca a tua justiça: o teu zelo pede-nos um mundo à imagem do teu amor. A primeira ganha a forma da esperança: a mão onde imprimes o teu selo. A segunda oferece a esperança: aponta a terra deserta e diz-lhe “Desposada”, aponta o estrangeiro e diz-lhe “Meu povo”.

Postos entre estes caminhos que se cruzam, aprendemos que a liberdade de caminhar nos próprios passos implica o desamparo, a dúvida quanto à direção e o risco de decidir. Mas em tudo isto, Senhor, és tu o nosso chão, tu firmas os nossos pés e acolhes a nossa rota.

E agora, Senhor, olha de novo para o teu rebanho, uma geração jovem, tanto do deserto como da terra prometida, tão alegre quanto frágil: assim a nossa alegria é consciente e a nossa fragilidade entusiasmada.

Ensinas-nos a caminhar como quem acompanha, em modos misteriosos, é certo.

A nossa espera é também a tua. A tua aliança exige os nossos passos: esperamos-te, mas vamos a ti, que nos esperas.

Diz-nos onde nos aguardas, a nós que somos a tua herança, a geração que procura o teu rosto. Ao teu nome ainda se ajoelham os nossos olhos, ainda os nossos ouvidos se inclinam.

Vem também trazer-nos a casa onde reinarás para sempre.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.