Relatório da comissão francesa: uma verdade que nos ultrapassa

Para nós jesuítas e para toda a Igreja, o relatório é só um passo num longo caminho. O trabalho de contar a verdade deve continuar: o nosso Serviço de Escuta espera continuar a receber testemunhos, pois trabalho de reparação deve continuar.

Para nós jesuítas e para toda a Igreja, o relatório é só um passo num longo caminho. O trabalho de contar a verdade deve continuar: o nosso Serviço de Escuta espera continuar a receber testemunhos, pois trabalho de reparação deve continuar.

A 5 de outubro de 2021 às 9h00 horas assistimos à apresentação do relatório da CIASE, uma comissão independente para a investigação dos abusos sexuais na Igreja, criada a pedido da Conferência dos Bispos de França e Conferência dos Religiosos de França (CEF e do CORREF), após quase três anos de trabalho. Antes de mais, dois preâmbulos: a independência de que a Comissão pôde usufruir, tanto na constituição da sua equipa como na metodologia e a provação individual de cada membro experimentada no encontro com as vítimas, “ao tocar com o dedo” o que estas experimentaram: sofrimento, isolamento e, muitas vezes, vergonha e culpa, numa autêntica experiência de descida aos infernos.

No nosso Serviço de Escuta, sempre que encontramos pessoas vítimas de jesuítas, temos a mesma experiência. O encontro com a verdade derrete todas as nossas defesas: o medo, a tristeza, a vergonha esmagam-nos. A 5 de outubro, uma nova onda de números impõe-se-nos avassaladora, números de que ninguém suspeitava. O relatório estima que 216.000 pessoas foram abusadas sexualmente por um padre ou religioso em França entre 1950 e 2020. Cometeram-se significativamente mais agressões sexuais a menores dentro da Igreja Católica do que em outras esferas de socialização (campos de férias, escolas públicas, clubes desportivos, atividades culturais e artísticas). Depois da intensidade do problema que nos foi revelado pelos testemunhos, é a magnitude que nos deixa sem palavras: na noite de 5 de outubro, ficámos inconscientes.

Finalmente, há a nossa negligência em relação àqueles que eram os mais clarividentes, aqueles que gritavam que o problema era sistémico e que apresentavam números que considerávamos excessivos. Contudo, eles viram muito mais claramente do que nós e o trabalho sério da CIASE, tanto humano como científico, prova que tinham razão.

A ladainha dos erros prossegue. Há o horror das ofensas e crimes de que clérigos e religiosos foram culpados. Existem erros de gestão humana na formação e controlo destes clérigos. Há os maus-tratos das vítimas e dos seus familiares que saíram do silêncio, que foram muito mal recebidos ou simplesmente convidados a seguir em frente. Finalmente, há a nossa negligência em relação àqueles que eram os mais clarividentes, aqueles que gritavam que o problema era sistémico e que apresentavam números que considerávamos excessivos. Contudo, eles viram muito mais claramente do que nós e o trabalho sério da CIASE, tanto humano como científico, prova que tinham razão. O método utilizado pela CIASE enriquece os relatórios de outros países que precederam a França no seu trabalho de verdade: o inquérito sob a forma de sondagem geral da população mede quantas vítimas ainda permanecem em silêncio: muitas não revelam o seu sofrimento nem à Igreja, nem às autoridades judiciais, nem a comissões ad hoc. A fim de medir a extensão do problema, não é portanto possível em parte alguma – nem em França nem em qualquer outro lugar – contar simplesmente as queixas e os testemunhos. Por outras palavras, cada testemunha é o porta-voz de muitas outras que permanecerão discretas.

Quarenta e oito horas após a publicação do relatório oito pessoas que tinham sido abusadas por um jesuíta contactaram-nos. Para sete delas, foi um re-contacto. Várias partilhavam o quanto estavam satisfeitas com a publicação do relatório e como isto era um passo em frente para elas. Expressaram a sua satisfação por terem sido ouvidas pela nosso Serviço de Escuta: sabem que o seu testemunho foi transmitido à CIASE e faz parte desta herança de sabedoria e verdade que é agora publicada. Uma escreveu-nos: “Agora posso seguir em frente”. No entanto, nem todas as vítimas são assim. Para nós jesuítas, como para toda a Igreja, a publicação do relatório é apenas um passo num longo caminho. O trabalho de contar a verdade deve continuar: o nosso Serviço de Escuta espera continuar a receber mais testemunhos, porque o trabalho de reparação deve seguir para continuar a ajudar, também, a própria Igreja.

 

Para contactar o Serviço de Escuta da Companhia de Jesus pode escrever para [email protected] ou para Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa, ou ligar para o telefone 217 543 085, de segunda a sexta-feira, entre as 9h30 e as 18h.

Para contactar a Comissão Independente para o Estudo dos abusos na Igreja em Portugal pode visitar o site DAR VOZ AO SILÊNCIO, ou usar os seguintes contactos:
Email: [email protected]
Telemóvel: 91 711 00 00
Morada: CE COMISSÃO INDEPENDENTE, APARTADO 012079,  EC PICOAS – LISBOA, 1061 – 011 LISBOA

Estes dois serviços são autónomos e independentes, apesar de terem como missão comum contribuir para erradicar os abusos sexuais na Igreja Católica.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.