Páscoa 2022: mistério, símbolo e profecia

Após o Domingo da Misericórdia, uma meditação pascal sobre o tempo sombrio que vivemos pela mão do P. José Nuno Ferreira da Silva.

Após o Domingo da Misericórdia, uma meditação pascal sobre o tempo sombrio que vivemos pela mão do P. José Nuno Ferreira da Silva.

Hoje é Domingo da Misericórdia, com que concluiu a Oitava da Páscoa de 2022.

Do Deserto onde me encontro e onde permanecerei ainda alguns meses, à procura do que só o silêncio da solidão pode dar, partilho esta meditação pascal sobre o tempo sombrio que vivemos. O silêncio, precisamente, a ditou.

Há dois anos disse, e há um ano repeti, que aquelas seriam “a grande Páscoa das nossas vidas”, em razão da consciência da nossa fragilidade existencial a que a experiência da vulnerabilidade face à pandemia nos reconduzia. É que a fragilidade humana é o lugar da Páscoa de Cristo.

Mas este ano faz-nos ir mais longe ainda na consciência da fragilidade humana: ela não se nos dá a experimentar apenas na vulnerabilidade que nos diz mortais; oferece-se ainda mais agudamente na experiência do mal. E a Páscoa de 2022 é a Páscoa em que, tão perto que é impossível ignorar, o mal, o escândalo perpétuo da iniquidade, se manifesta na sua porventura mais tremenda concretização: a guerra. Não libertos ainda da pandemia, vemo-nos encharcados por uma guerra. É total a expressão da fragilidade, não apenas porque diz ainda a vulnerabilidade, mas porque diz a iniquidade. A morte e o pecado, as duas dimensões da fragilidade humana, existencial e moral, são o lugar da Páscoa de Cristo. Esta, sim, é a Páscoa das nossas vidas! Como será para o ano? Será Páscoa, será sempre Páscoa, sempre será Páscoa, vitória paradoxal do Homem das Dores, Deus dorido, elevado sobre a cruz, sepultado, ressuscitado aparecido a uma mulher, na alva do Terceiro Dia.

A Páscoa é e será sempre paradoxal porque vive do íntimo paradoxo da misericórdia de Deus em diálogo com a fragilidade humana: quanto maior e mais radical for a experiência desta, tão maior e mais interiorizado será o nosso conhecimento do rosto d’Aquele que é a misericórdia, porque a nossa miséria a requer e reclama e, quanto mais funda e larga for a miséria, mais profunda e largamente Deus oferece a misericórdia. É paradoxo mesmo, mistério – como o da nossa iniquidade – ininteligível aos limites da nossa razão: a miséria humana atua a misericórdia divina, Deus deixa-se ativar pelo Homem no processamento misericordioso da História. Di-no-lo a Cruz, a cujo dinamismo redentor nada escapa. A misericórdia é o mistério. A cruz é o símbolo. Irina, ucraniana, e Albina, russa, – quem são? – a profecia. Tudo é a Páscoa!

Diz o mistério, o símbolo e a profecia que a Páscoa instaura – e não, em primeiro lugar, por serem as duas uma parábola do cuidado, enquanto mulheres e enfermeiras. Irina é enfermeira de cuidados paliativos; Albina é estudante de enfermagem. Irina é ucraniana; Albina é russa.

Por isto, destaco a fotografia maior para dizer esta Páscoa. Há fotos belíssimas de Irina e Albina, empunhando já a cruz, a olhar cada uma o olhar da outra, ou Albina a olhar o chão e o olhar de Irina a atravessar o tempo. Mas destaco a primeira, em que os seus olhares, em vez de se espelharem reciprocamente, ou se perderem no chão ou no tempo, convergem e se encontram no espelho nu e límpido, intrigante e intacto, mesmo se ferido, do Cosmos, que é chão e tempo: o espelho, a Cruz.

Esta foto diz a Páscoa de 2022. Aliás, diz a Páscoa, simplesmente. Diz o mistério, o símbolo e a profecia que a Páscoa instaura – e não, em primeiro lugar, por serem as duas uma parábola do cuidado, enquanto mulheres e enfermeiras. Irina é enfermeira de cuidados paliativos; Albina é estudante de enfermagem. Irina é ucraniana; Albina é russa. E por este facto é que foram chamadas para levar a Cruz de Jesus na Estação XIII da Via Crucis da noite de Sexta-feira Santa no Coliseu, em Roma.

O Papa Francisco quis esta interpelação e não abdicou dela, resistindo a todas as pressões que vieram de vários âmbitos, tentando sobrepor as velhas razões de guerra à sempre nova novidade do Evangelho. Francisco resistiu. Razão política ou diplomática alguma poderia castrar, estancar, calar a Páscoa, impedir o mistério de se narrar, o símbolo de significar, a profecia de ser pronunciada. A persistência do Papa conseguiu inscrever, na escuridão instituída pelo tombar das bombas, o jorrar do sangue e o correr das lágrimas, um ponto de luz evangélica, verdadeiramente o radical da alternativa cristã, tão absolutamente necessário neste tempo de bélicas narrativas de diplomacia e propaganda rendidas e vendedoras ao discurso e do discurso exclusivista da violência. E Irina, ucraniana, e Albina, russa, juntaram as suas mãos e tomaram a Cruz de Jesus, a Cruz dos seus povos, como aos olhos e aos ouvidos de todos aparece e soa, povos um agredido outro agressor. A perpétua paixão do Mundo, paixão de Deus, Deus em paixão-compaixão.

É porque uns agridem e outros são agredidos – e quem não se reconhece ator seja dum seja doutro destes papéis nos contornos mais ou menos secretos da sua existência, em que se aninham, determinante, Caim, o fratricida, e, sofrendo, Abel, a vítima-irmão? –, é porque uns matam culposamente e outros são mortos inocentemente que a Cruz de Cristo, síntese da sua Páscoa toda, Paixão, Morte e Ressurreição, irrompe no História como horizonte e fonte.

Pressionado, Francisco resistiu. Cedeu, retirando o texto da meditação da Estação XIII da Via Crucis, mas manteve Irina, ucraniana, e Albina, russa, a levar a Cruz no passo da Morte de Jesus. A Páscoa, mistério, símbolo e profecia, plenamente dados e exponenciados pelo silêncio no seu impacto transfigurador, quando se ouviu no Coliseu de tantas memórias sangrentas de martírio-semente: “Diante da morte, o silêncio é mais eloquente do que as palavras. Permaneçamos, portanto, em silêncio orante e cada um no seu coração reze pela paz no mundo”. De facto, o silêncio – este, um silêncio discutido e disputado – é a grande via de acesso ao mistério, ao símbolo e à profecia. À Páscoa! E é, o silêncio, a grande via de acesso do mistério, do símbolo e da profecia pascais ao nosso interior. O silêncio é o acesso à mais radical verdade da Páscoa!

Pressionado, Francisco resistiu. Cedeu, retirando o texto da meditação da Estação XIII da Via Crucis, mas manteve Irina, ucraniana, e Albina, russa, a levar a Cruz no passo da Morte de Jesus.

Que palavras perdemos? Dizia assim a Meditação: “A morte em redor. A vida que parece perder valor. Tudo muda em poucos segundos. A existência, os dias, brincar com a neve de inverno, ir buscar os filhos à escola, o trabalho, os abraços, as amizades… tudo. Inesperadamente tudo perde valor. «Onde estais, Senhor? Onde Vos escondestes? Queremos a nossa vida anterior. Porquê tudo isto? Que falta cometemos? Porque é que nos abandonastes? Porque é que abandonastes os nossos povos? Porque é que dividistes assim as nossas famílias? Porque é que já não temos vontade de sonhar e de viver? Porquê se tornaram tenebrosas como o Gólgota as nossas terras?» As lágrimas acabaram-se. A raiva deu lugar à resignação. Sabemos que Vós nos amais, Senhor, mas não sentimos este amor e isto faz-nos enlouquecer. Acordamos de manhã e sentimo-nos felizes por alguns segundos, mas logo a seguir pensamos como será difícil reconciliar-nos. Senhor, onde estais? Falai no silêncio da morte e da divisão e ensinai-nos a fazer a paz, a ser irmãos e irmãs, a reconstruir aquilo que as bombas teriam querido aniquilar”.

Palavras, estas, significativas e fecundas que não foram ditas e ouvidas. Mas quão mais significativo e fecundo terá sido o silêncio imenso que acompanhou os passos de Irina, ucraniana, e Albina, russa, transportando juntas aos olhos do mundo, sofrendo intensamente, a Cruz do Redentor (vídeo da Via Crucis em Roma, minuto 1h16′)? O mistério narrou-se. O símbolo uniu. A profecia foi pronunciada. A Páscoa cumpriu-se. Porque, que mais necessário é, em tempo de violentos e de vítimas, que a narrativa do mistério do perdão?; que mais necessário, em tempos de injustiça e guerra, que o símbolo da reconciliação?; que mais necessário, em tempos de incerteza e medo, que a profecia da esperança? Que é mais necessário, em tempo de paixão, que a compaixão?

Foi a estas interrogações – e a tantas outras, tantas quantas formularam secretamente os milhares junto ao Coliseu e os milhões de pessoas que, por todo o mundo, seguiram em direto a transmissão da Via Crucis –, tão cruciais como a Cruz caminhando através delas, que o silêncio, imposto por razões políticas e diplomáticas, acabou por oferecer, afinal, uma oportunidade única de soarem mais clara e distintamente no interior de cada um, que assim pôde, não apenas limitar-se a acompanhar uma meditação previamente escrita por alguém, mas confrontar-se consigo mesmo mergulhado neste tempo de caos.

Só a nudez interior do silêncio permite reconhecer e encontrar na Cruz do Crucificado-Ressuscitado a narrativa do mistério que redime a fragilidade humana, o símbolo que une e vincula os homens entre si e com Deus, a profecia que abre o futuro à esperança no lugar do desespero, à verdade no lugar da mentira, à novidade do Reino desde já e, além morte, à plenitude do encontro, à eternidade da felicidade, à vida inteiramente realizada. É a Páscoa! Esta é a alegria da Páscoa, alegria irreversível, alegria irrevogável, alegria inexpugnável! Mesmo, ou principalmente, se as razões de sofrimento, angústia e tristeza se impõem. A alegria que a Páscoa oferece é mais profunda do que as fundas covas deixadas pelas bombas que tombam sobre Mariupol (e podemos esquecer Alepo, na Síria, e a Palestina e a Líbia e a Eritreia e a Nigéria e Myanmar e a Nicarágua e…?). A alegria da Páscoa, sempre mais além do que o destino que buscam e encontram os refugiados de toda a Ucrânia (e que hospitalidade é oferecida aos do Médio Oriente ou do seu extremo e da África e da América latina e…?). A alegria da Páscoa, só a pode conhecer quem se converte.

“A paz esteja convosco!” – três vezes o diz o Crucificado-Ressuscitado no Evangelho de hoje. “Mete o teu dedo nas chagas das minhas mãos e a tua mão no meu lado aberto”, diz a Tomé, que não O vira. “E não sejas incrédulo, mas crente”. Se não o podemos ver, porque o horizonte está encoberto pelo fumo negro do fragor da guerra, ao menos procuremos ouvi-lo, no silêncio dos corações, a dizer a cada um: “Felizes os que acreditam sem terem visto”. Todas as chagas da nossa humana fragilidade ferida, as dos ucranianos como as dos russos e… de tantos outros, todas são transfiguráveis, ilumináveis pelas chagas do corpo do Ressuscitado: o mistério da misericórdia, o símbolo da Cruz, as mãos e o olhar de Irina, ucraniana, e Albina, russa, levando e olhando convergentemente a Cruz, através da noite silenciosa do Coliseu de Roma. É noite neste Mundo rasgado por valas comuns. Mas “esta é a noite em que Jesus Cristo se levanta vitorioso do túmulo!” – canta o precónio da Vigília Pascal – para nos levantar na vida, para nos levantar da morte, para erguer o Mundo e o sarar, para fazer entrar nele, através das fendas que os disparos abrem nas paredes escurecidas e sombrias do tempo, chagas no corpo do Mundo, a luz clara do mistério, do símbolo e da profecia da Páscoa eterna a fazer-se História. Quanto mais a História a nega, mais a afirma como dom gratuito e amoroso de Deus. Dom que pede e espera, pacientemente, a resposta do compromisso livre dos homens, de cada pessoa humana. É a Misericórdia, o absoluto pascal!

O Senhor ressuscitou verdadeiramente e, paradoxalmente, vive e sofre e morre em cada pessoa humana que viva e sofra e morra às mãos de outra pessoa humana… sem esquecer que o lugar mais extremo do Evangelho é o amor aos inimigos. É, em tudo, o evangélico paradoxo pascal da Cruz de Jesus Cristo, que não poderá nunca calar o anúncio a que a Igreja – e nela cada cristão – está obrigada, por condição e missão: é sacramento de salvação.

“Mete o teu dedo nas chagas das minhas mãos e a tua mão no meu lado aberto” – e Tomé respondeu – “Meu Senhor e meu Deus”. Felizes de nós se acreditarmos, não apenas sem termos visto, mas até contra a aparência da evidência. O Crucificado é o Ressuscitado! Ressurgiremos! Aleluia!

Mosteiro Desierto de San José de las Batuecas

Domingo da Misericórdia, 24 de abril de 2022

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.