O trauma do luto em tempos de Covid

Passamos por várias fases, de negação, de desespero, de revolta e de tristeza profunda e no fim, porque não deixá-la viva dentro de nós em comunhão com Deus e aproveitar para passar aos outros o que ela nos ensinou de melhor?

Passamos por várias fases, de negação, de desespero, de revolta e de tristeza profunda e no fim, porque não deixá-la viva dentro de nós em comunhão com Deus e aproveitar para passar aos outros o que ela nos ensinou de melhor?

Escrevo este texto como testemunho de vida e ao mesmo tempo como psicóloga.

Até ao Natal sempre tinha encarado a Covid-19 como algo que seria inevitável todos apanharmos, algo que seria passageiro, por isso lidava com o tema com algum respeito, mas sem medo. Parecia-me até um exagero a atitude de algumas pessoas, mas mantinha uma certa distância física com quem ia contactando.

Alguns amigos decidiram, por precaução, fazer o teste da Covid antes de se juntarem aos familiares para comemorar o Natal, outros decidiram só se juntar ao ar livre e ainda outros optaram por não se juntar de todo.

Nós, talvez por nunca termos considerado que seríamos atingidos pela morte, juntamo-nos com a família direta (um pai com os dois filhos, os respetivos e os netos). Resultado: todos ficamos com Covid e perdemos quem nos era mais querido.

Atrevo-me mesmo a referir que se vive um verdadeiro trauma. Trauma resultante não só do sentimento de culpa associado à morte, mas também de toda a situação consequente.

A perda de alguém é sempre dolorosa e acarreta sempre dúvidas do que poderia ter acontecido se… existindo, por isso, muitas vezes, sentimentos de culpa associados. Contudo, quando surge como algo completamente inesperado e que poderia ter sido evitável, a sensação de aperto no peito é difícil de desaparecer. Atrevo-me mesmo a referir que se vive um verdadeiro trauma. Trauma resultante não só do sentimento de culpa associado à morte, mas também de toda a situação consequente. Passei a ter medo da Covid e passei a ter medo do contacto físico, que tanto é preciso para a expressão do afeto. Por momentos, fiquei sem esperança na vida como ela é e sem conseguir ver um fim a esta pandemia.

As cerimónias e os rituais de homenagem e despedida física de quem parte são fundamentais para a vivência do luto. Como é importante partilhá-los com quem nos é querido, como os nossos familiares e amigos, e como é reconfortante sentir que a pessoa que parte era tão querida pelas pessoas. Com a pandemia, tudo isso fica mais vazio. Lembro-me de, após os longos dias de incerteza de como iriam ocorrer as cerimónias – se haveria missas, qual o número limite de pessoas – e depois do corpo ser deixado na cremação, pensar: “onde é que nos podemos ir sentar e beber uma cerveja gelada com alguém que nos ajude a desanuviar?”. Nada disso foi possível. Podemos até pensar que, de certa forma, isto obriga a que a pessoa encare a realidade e que seja forçada, quer queira quer não, a viver o luto. Contudo, é feito de uma forma mais abrupta, criando sentimentos de desamparo e solidão.

Na verdade, o luto não se faz em cinco dias para os parentes de 1.º grau, nem em dois dias para os de 2.º grau, como determina a lei em vigor do Código de Trabalho no nosso País. O luto é variável de pessoa para pessoa e muitas vezes pode só ocorrer anos mais tarde. Na minha opinião, deveria haver um mês para as pessoas poderem lidar com este primeiro impacto do luto. Se as restrições impostas pela situação pandémica da Covid prolongam o luto? Penso que não, necessariamente, pois depende de cada pessoa. Contudo, garantidamente que o tornam mais doloroso e difícil de vivenciar.

Ajudou-nos bastante todos os momentos de espiritualidade e convivência social que tivemos online com familiares e amigos. O convívio, mesmo que virtual, a partilha das nossas vivências com quem partiu e a exteriorização do que se sente, é fundamental para não deixar acumular a tensão que pode ocorrer da profunda tristeza que existe internamente. É preciso ter contacto com os outros, com a natureza, fazer caminhadas, fazer desporto e não se deixar ficar fechado em casa isolado. Caso contrário, a tensão aumenta, as alterações de sono intensificam-se e corre-se o risco de cair numa depressão profunda.

Deve ouvir música e deve falar com quem lhe faz bem, com pessoas positivas e que a ajudem a ganhar alento e esperança novamente. Pode planear a criação de um momento de homenagem, pós-pandemia, com aqueles que também sentem a mesma perda.

A pessoa tem de encontrar paz e tranquilidade de alguma forma. Deve ouvir música e deve falar com quem lhe faz bem, com pessoas positivas e que a ajudem a ganhar alento e esperança novamente. Pode planear a criação de um momento de homenagem, pós-pandemia, com aqueles que também sentem a mesma perda.

A mim, pessoalmente, o que me dá serenidade e tranquilidade é sentir essa pessoa viva dentro de mim, encontrá-la nas pessoas que guardam, como eu, pequenas formas de ser dela e encontrá-la através dos sítios, dos sabores e dos cheiros.

Passamos por várias fases, de negação, de desespero, de revolta e de tristeza profunda e no fim, porque não deixá-la viva dentro de nós, em comunhão com Deus, e aproveitar para passar aos outros o que ela nos ensinou de melhor?

 

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* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.