“Humildade e obediência”

São as qualidades mais importantes num jesuíta, diz o Irmão José Ribeiro Meijinhos que fez em outubro 70 anos na Companhia de Jesus. Uma entrevista de vida feita pelos padres e noviços da sua comunidade, no Noviciado, em Cernache.

São as qualidades mais importantes num jesuíta, diz o Irmão José Ribeiro Meijinhos que fez em outubro 70 anos na Companhia de Jesus. Uma entrevista de vida feita pelos padres e noviços da sua comunidade, no Noviciado, em Cernache.

P. Miguel Gonçalves Ferreira: Irmão Zé, o que o trouxe à Companhia? Como foram os tempos de formação? 

Uns rapazes da minha aldeia foram para Lisboa trabalhar, mas a mim não me deixaram. Então fui para Guimarães (Seminário de Santa Marinha da Costa), para o Colégio Apostólico, convencido por uma tia e por um irmão jesuíta, o Ir. Silvino, que também era da minha terra. Depois, no Colégio Apostólico fui gostando das práticas (sermões) dos padres e principalmente da vida de entrega, sacrifício e trabalho. Também gostava dos jogos de vólei e da vida com os outros postulantes. Foi natural entrar para o noviciado. Entrei para irmão coadjutor, que nesses tempos significava tratar das lides das casas dos padres jesuítas. Fui começando a aprender para ser cozinheiro, mas passei logo para o ofício de sapateiro e depois para ajudante no refeitório. Depois do incêndio do noviciado da Costa (em 1951), fomos para Soutelo e comecei a trabalhar como sapateiro. Também ajudava com as eletricidades e cortava cabelos. Fiquei em Soutelo uns anos, onde fiz os últimos votos. Até que pedi para ir para as missões, para Moçambique, animado por alguns irmãos e padres. Ainda passei pela comunidade da Faculdade de Filosofia, em Braga. Depois estive uns meses em Lisboa (na antiga comunidade da Rua da Lapa) e em Évora, para substituir um outro irmão, antes de ir para África.

P. Belchior: O que guardou da sua experiência em África?

Estive 11 anos em Moçambique, entre 65 e 76. No primeiro ano trabalhei na residência universitária dos jesuítas em Lourenço Marques, hoje Maputo. Depois fui para a Beira, trabalhar na paróquia de Nossa Senhora de Fátima. Cuidava da casa, das compras para a comunidade, dava catequese. Mas onde me senti mais realizado foi na missão de Zobue (no noroeste de Moçambique, na fronteira com o Malawi). Tinha uma missão no Seminário que me dava muita liberdade e podia tomar decisões. Por exemplo: ia muitas vezes a Tete (cidade a 120 km de Zobue) vender a hortaliça que cultivávamos a uma senhora. Com o que ela pagava, eu ia fazer as compras para o seminário que tinha 120 pessoas a viver. Tinha independência e responsabilidade para fazer tudo por mim, esclarecido. Também fiz muitos amigos em África. Foram bons anos, mas tivemos de sair com a independência de Moçambique, em 1976.

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O Ir. José com os pais no dia em que fez os seus primeiros votos, em 1950

Francisco, noviço: Teve saudades da vida em Moçambique? Como viveu o regresso a Portugal?

Em Moçambique era um estilo de vida muito diferente, mais social. Mesmo com outras congregações religiosas, quando íamos em viagem e passávamos por uma missão de franciscanos, eles acolhiam-nos e era uma alegria. E nós também os acolhíamos quando nos visitavam. Dávamos cama e comida por uns dias sem problema e era uma alegria. O regresso foi uma experiência muito nova. Fui enviado para Coimbra com duas finalidades: fazer comunidade com os três padres que cá estavam (Vasco Pinto de Magalhães, Alberto Brito e António Vaz Pinto) e também me pediram para estudar. Fiz o liceu para adultos, fiz os exames, mas houve um que me saiu mal, acho que foi o de francês. Também tirei o curso de dactilógrafo para ajudar um pouco os padres como secretário, se eles precisassem. Fui também ministro da comunidade durante alguns anos.

Mas o início da comunidade foi muito boa. O Centro Universitário Manuel da Nóbrega (CUMN) tinha começado um ano antes e fui lá secretário. O noviciado também tinha passado para Coimbra e o P. Alberto tinha sido indigitado como Mestre de Noviços, mas não havia noviços naquele princípio. Depois os noviços começaram a chegar. Foi um tempo muito novo.

Manuel, noviço: Como olha para a sua missão atual no Loreto e no noviciado?

Eu gosto muito de fazer o que faço: limpeza e jardinagem. Gosto de fazer as coisas bem feitas e gosto muito do Loreto. Agora com a casa renovada, depois das obras, ainda gosto mais. Fui pela primeira vez com o Padre António Vaz Pinto ver a quinta do Loreto quando ficou à venda, porque a Província estava à procura de uma casa de retiros para jovens. Quando ficou para a Companhia, comecei a tratar da quinta que era praticamente só mato, mas eu nem uma enxada tinha, na altura. Fazia o que podia. Com o tempo, a coisa foi-se arranjando. Depois o noviciado passou para o Loreto e foi mais fácil. Aqui no noviciado faço comunidade. Olho para esta minha vida como um fim de vida, pronto… vou fazendo o que posso e a mais não sou obrigado. (risos)

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Em 1990, numa visita do noviciado ao antigo Seminário da Costa.

Ir. Rogério Leal: O noviciado nos anos 70 era muito diferente do atual?

Há muita coisa de diferente, muita coisa… No noviciado, tudo depende muito do Padre Mestre. Há uns mais liberais e outros mais rígidos. Vai variando. Mas os tempos também são muito diferentes. As pessoas são o que há de mais diferente. Antes, eram mais rigorosas, até rígidas. Naquele tempo eu achava muito bem, mas agora acho que às vezes era rigor demais. Por outro lado, antes também havia mais capacidade de sacrifício. Hoje, se calhar, as pessoas só conseguem fazer bem o que lhes apetece.

Mas os tempos também são muito diferentes. As pessoas são o que há de mais diferente. Antes, eram mais rigorosas, até rígidas. Naquele tempo eu achava muito bem, mas agora acho que às vezes era rigor demais. Por outro lado, antes também havia mais capacidade de sacrifício. Hoje, se calhar, as pessoas só conseguem fazer bem o que lhes apetece.

Irmão José Meijinhos

Bruno, noviço: Depois de 40 anos a acompanhar o noviciado, como descreveria um noviço?

É um rapaz que parece que tem asas. Com muita vontade, sempre de um lado para o outro, a querer fazer tudo muito bem, mas nem sempre sabe como. Hoje em dia, os noviços já chegam com experiência de vida, já sabem algumas coisas da vida, já têm formação e sabem muitas mais coisas que eu. Mas de religião ainda não sabem tudo e às vezes acham que sabem (risos).

P. Pedro Rocha Mendes: Lembra-se de algum momento especial ou caricato em todos estes anos a viver com noviços?

Quando o noviciado era no Loreto, lembro-me de um noviço, o Lourenço Eiró, que me quis pregar uma partida e que me fechou na gaiola dos pássaros enquanto eu lá estava a limpar. Na altura fiquei zangado, mas não lhe disse nada. Na verdade até gostei, porque ele ficou radiante e fartou-se de rir. Agora é padre e vive cá em casa…

P. Lourenço Eiró: Pois foi, ainda me lembro...Irmão, e qual é a qualidade mais importante para um jesuíta?

Entre duas qualidades não sei escolher a mais importante: humildade e obediência. Graças a Deus, vê-se ainda muita na Província.

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O Ir. José durante a entrevista, conduzida pelos noviços e padres que compõem a comunidade do noviciado

António, noviço: Quem é que o inspirou mais na humildade?

Penso que foi um jesuíta que foi bispo de Lichinga, o D. Luís Gonzaga Ferreira da Silva. Era muito singelo no trato com as pessoas e também muito inteligente. Mas aprendi sobre a humildade nos Exercícios Espirituais e nas práticas (sermões) dos padres, durante os tempos de formação. Também os padres Vasco PM, Alberto B e António VP me impressionaram muito nos inícios do CUMN, pela facilidade em falar com simplicidade sem se prepararem muito. A mim deixavam-me impressionado, aos jovens também, e até aos doutores de Coimbra.

P. Pedro Rocha Mendes: Como vê a nossa Província atualmente?

Acho que está muito bem. Já não temos tantos jesuítas como dantes, mas os que temos trabalham muito. Hoje vê-se muita humildade na nossa Província, já não nos achamos superiores a outros, como às vezes acontecia, antigamente.

António Santos Lourenço, escolástico: O que encontra de melhor na Companhia?

A Eucaristia (diz logo, sem sequer pensar…). E as amizades com os padres e com os outros irmãos. Mas o principal é a Eucaristia.

P. Duarte Rosado: Nestes 70 anos, lembra-se do seu momento de maior consolação? 

Não sei, mas acho que foi esta celebração dos 70 anos de Companhia que me prepararam (em 2018), no mesmo dia dos votos dos noviços. Gostei muito da cerimónia, do facto de ter sido juntamente com os votos dos noviços, da maneira como o Provincial falou na homilia, recordando os jesuítas que faziam jubileus (anos/ efemérides) na Companhia, e outros pormenores. Acho que as pessoas que estavam na missa gostaram muito. E também tive cá a minha família, com o meu irmão e as irmãs todas, alguns sobrinhos. Foi muito bonito.

Eduardo, noviço: Qual a maior dificuldade nestes anos de Companhia? E como a superou?

Uma altura tive uma discussão difícil com um mestre de noviços, que eu achava demasiado liberal. Mas ele é que era o mestre de noviços. Mas o tempo faz passar estas zangas.

P. Nuno Branco: Qual é a oração que mais lhe dá devoção?

É o Pai Nosso. Peço-Lhe que olhe por mim e tenho a certeza que Ele olha. Peço o pão de cada dia e ele está sempre a dar: o pão, a saúde, a doença. Dá tudo o que precisamos!

Afonso, noviço: O que é que mais gosta em Jesus?

Embora muitas vezes não O conheça bem, gosto do amor que Jesus nos tem. É que se Ele tira a mão, se não nos sustenta, nós desaparecemos do mapa.

Domingos, noviço: Ir. Zé, como é que me ensinaria a rezar?

Primeiro, ensinava-te o Pai-Nosso e dizia para rezares muitas vezes. Depois, dizia que a vida pode ser toda uma reza. O trabalho pode ser oração, as refeições podem ser oração, dormir pode ser oração… a vida é oração.

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No dia em que celebrou 70 anos de jesuíta, no ano passado.

Cronologia

1931 – A 20 de setembro nasce na aldeia de Póvoa de Arneirós, Lamego, filho de Manuel Ribeiro Meijinhos e Maximina Gonçalves

1947 – Muda-se para Guimarães para trabalhar no Colégio Apostólico, no Seminário de Santa Marinha da Costa

1948 – A 10 de outubro é admitido no noviciado da Companhia de Jesus, em Santa Marinha da Costa, Guimarães

1950 – Faz os primeiros votos de irmão jesuíta

1951 – Grande incêndio no Seminário da Costa. Com parte da comunidade, muda-se para a Casa da Torre, em Soutelo, ainda em obras

1962 – A 15 de agosto faz os últimos votos, em Soutelo

1965 – Depois de uns meses em Lisboa e Évora, é enviado para a missão de Moçambique.

1976 – Com a independência de Moçambique, regressa a Portugal e é destinado a Coimbra, para a comunidade do noviciado, na Couraça de Lisboa

2000 – Com a comunidade do noviciado, muda-se para a quinta do Loreto, também em Coimbra

2007 – O noviciado passa para Cernache

2018 – Faz 87 anos de vida, 70 anos desde a sua entrada no noviciado e 42 anos na comunidade do noviciado

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.