O P. Hans Zollner, sj é presidente do Centro de Proteção de Crianças da Universidade Gregoriana, membro da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores (PCPM), teólogo e psicólogo. O jesuíta é uma das personalidades da Igreja que mais se tem empenhado na luta contra os abusos sexuais e contra a cultura de encobrimento que os ocultou, fazendo parte da organização do encontro convocado pelo Papa Francisco que decorre entre os dias 21 e 24 em Roma. Em entrevista ao PONTO SJ, explica o que já foi feito e falta fazer. Partindo da sua experiência de encontro com vítimas de abusos, diz-nos quais são as suas expectativas. Nas respostas não foge à questão da eventual relação dos abusos com o celibato ou a homossexualidade.
O P. Zollner é membro da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores criada pelo Papa Francisco em 2014. O que faz exatamente este organismo?
A PCPM tem como missão proteger crianças e adultos vulneráveis de abusos sexuais e físicos. A tarefa específica da Comissão é a de propor ao Papa Francisco as iniciativas consideradas mais oportunas para proteger menores e adultos vulneráveis, de forma a que o Vaticano possa fazer todo o possível para assegurar-se que crimes como estes não se repitam na Igreja. A comissão procura promover a responsabilidade local das Igrejas particulares, em colaboração com a Congregação para a Doutrina da Fé, para proteção destas pessoas.
É um dos organizadores do encontro do Papa esta semana. O que se pode esperar deste encontro, sendo que o próprio Papa convidou a não criar expetativas demasiado altas?
O Vaticano já deu indicações concretas para reforçar a proteção de menores. O Papa Francisco deseja agora assegurar-se de que essas indicações são implementadas de modo decisivo. O convite do Papa a não criar expectativas demasiado altas nasce do facto da luta pela proteção das crianças não ser um sprint, nem uma maratona, mas uma corrida que exige um empenho constante e duradouro. Portanto, este encontro por si só não vai resolver os problemas. Trata-se de um passo – importante – num longo caminho.
Poderemos falar de sucesso do encontro na medida em que os participantes consigam levar os temas tratados – ou seja responsabilidade, responsabilização e transparência – para as suas Igrejas locais, para que aí possam surtir efeitos. Os obstáculos que no passado dificultaram uma correta gestão dos abusos devem ser claramente reconhecidos, identificados e eliminados de acordo com um plano rigoroso e realista. Cada um dos participantes deverá regressar a casa encorajado para enfrentar as distintas realidades de modo ativo e determinado. Tendo em conta a grande diversidade de contextos culturais, políticos, legais e sociais em que a Igreja está presente e pelos quais também é moldada, queremos fortalecer uma ação conjunta e decisiva para o bem-estar e a proteção das crianças e dos jovens. Procuramos unir esforços no estabelecimento de normas universais, deixando ao mesmo tempo espaço para ter em conta as características locais.
O Papa pediu aos bispos para, antes de irem para Roma, se encontrarem com vítimas, de modo a poderem sentir o seu sofrimento. Será esta falta de compaixão dos responsáveis pela Igreja que está a impedir que se tomem as medidas necessárias para resolver os problemas do passado?
É essencial que seja dada voz às vítimas e não apenas se fale sobre elas. Neste sentido, o Santo Padre pediu a todos os participantes que façam aquilo que a reunião em si, por tempo e espaço, não consegue fazer: entrar em contacto com vítimas de abusos das suas áreas de responsabilidade, encontrar-se pessoalmente com elas, colocando-se em pé de igualdade e deixando-se tocar pela sua experiência.
Medidas imediatas, tais como o afastamento dos abusadores dos seus cargos, a demissão do estado clerical e a emissão de diretivas claras, são essenciais. No entanto, é necessário ir mais longe, é necessário algo mais profundo, que leve a mudanças na atitude e na postura, que fortaleça a sensibilidade para com as vítimas de abusos sexuais e os seus próximos.
Teve contacto pessoal com vítimas que sofreram abusos de padres e religiosos. O que mais as afeta na sua dor e o que é que elas esperam dos responsáveis da Igreja?
Para muitos, a gravidade especial do abuso por parte de membros do clero ou de outros representantes da Igreja está no facto de verem profundamente abalada a sua confiança em si mesmos, nos outros e em Deus. O primeiro e mais importante passo para a cura das feridas é a escuta empática, independentemente de quanta raiva, desespero, acusações e lágrimas possam vir ao de cima. As vítimas de abusos esperam, seguramente, que nós como Igreja Católica façamos tudo aquilo que está ao nosso alcance para impedir os abusos e, no caso de eles acontecerem, lidar com eles. Aqui entram também as consequências para os perpetradores.
Medidas imediatas, tais como o afastamento dos abusadores dos seus cargos, a demissão do estado clerical e a emissão de diretivas claras, são essenciais. No entanto, é necessário ir mais longe, é necessário algo mais profundo, que leve a mudanças na atitude e na postura, que fortaleça a sensibilidade para com as vítimas de abusos sexuais e os seus próximos. O que é verdadeiramente necessário é a prontidão para efetivar processos de formação que consigam transformar as pessoas, no nosso caso, principalmente os responsáveis da Igreja.
O que é verdadeiramente necessário é a prontidão para efetivar processos de formação que consigam transformar as pessoas, no nosso caso, principalmente os responsáveis da Igreja.
Há certamente pessoas que têm conhecimento de abusos – em primeira pessoa ou em próximos – mas preferem manter-se em silêncio por medo do transtorno em que podem incorrer. Talvez não saibam como denunciar, ou temem que ninguém acredite nelas, e por isso não vale a pena. Como se podem entender estes medos e como se podem ultrapassar?
Devemos transmitir às vítimas que levamos a sério as suas preocupações e angústias. Temos de encorajá-las a abrirem-se e a falarem dos seus medos. E muito concretamente: temos de informá-las acerca das estruturas de apoio a que têm à sua disposição e que lhes podem prestar uma ajuda profissional. Temos de mostrar às vítimas, com a adoção de medidas decisivas, que agimos decididamente contra os perpetradores. E por último, mas não menos importante, temos de demonstrar, através do modo consequente com que lidamos com os casos de abusos, que estamos decididamente dispostos a fazer luz sobre todos os casos que possam existir, ainda que distantes no tempo.
Muitos cristãos encaram esta situação com tristeza, mas também com a sensação de que nada podem fazer. O que diria a essas pessoas? Há algo que todos possam fazer?
Para começar, podemos todos estar vigilantes, na realidade social em que cada um se insere. Podemos questionar-nos: existe à nossa volta alguém que potencialmente tenha sido vítima de abusos? Se sim: ir ter com essa pessoa, falar-lhe, aprender a acolher as suas preocupações e angústias, mostrar empatia e encorajá-la a abrir-se e procurar ajuda profissional. Se vier ter connosco alguma vítima de abusos, podemos escutá-la verdadeiramente, com ouvidos abertos, espírito aberto e coração aberto. Isto, qualquer um de nós pode fazer.
Na sua missão, tem contacto com a realidade de diversos países. Como sente que a consciência destes problemas tem evoluído nos últimos anos? Trata-se de um caminho global, mas a várias velocidades?
A situação é distinta em cada país. Depende muito da cultura, mas também do estado pessoal e financeiro de cada Igreja local. Também no interior de cada país existem diferenças entre dioceses, como é o caso em Itália. Aqui a conferência episcopal é muito alargada, de modo que podem coexistir situações locais muito diversas. Temos dioceses que desde há tempo e de modo sistemático afrontam a questão, como as de Bergamo e Bozen, que em certo sentido podem servir de exemplo para outras. Muitas outras, ao contrário, estão muito mais atrás, também porque são pequenas e desprovidas de meios. Existem também regiões mais avançadas na formação dos clérigos e dos próprios formadores, como na Emília e na Toscana.
No geral dá para perceber que nos lugares em que há mais anos foram implementadas medidas de prevenção, o número de novos casos, posteriores à adoção das medidas, aproxima-se do zero. Ou seja, onde se vai ao encontro das vítimas, onde se fala de abusos e se investe em prevenção, o número de abusos diminui substancialmente. A prevenção funciona. Um exemplo é a Austrália, onde a Igreja católica desde meados dos anos 90 está publicamente envolvida em casos e acusações de abusos. Como consequência foi implementado praticamente tudo o que se possa imaginar em termos de intervenção e prevenção de abusos. Muito diversa é a situação do país vizinho, a Papua Nova Guiné, em que a discussão sobre o tema dos abusos ainda não aconteceu na sociedade, pelo contrário, o abuso é um tabu. Isto num país em que é um castigo normal um pai violentar os seus filhos, quando aos olhos dos adultos tenham cometido alguma falta grave.
Podemos todos estar vigilantes, na realidade social em que cada um se insere. Podemos questionar-nos: existe à nossa volta alguém que potencialmente tenha sido vítima de abusos?
Os abusos sexuais frequentemente estão ligados a abusos de poder. O Papa também tem insistido na necessidade de acabar com o clericalismo. Como é que as duas coisas se conjugam?
O fenómeno dos abusos tem diversas facetas, e não se limita ao campo da sexualidade, mas pode estender-se também ao âmbito espiritual. O Papa Francisco tem dito repetidamente que «abuso sexual, abuso de consciência e abuso de poder» estão frequentemente associados. Portanto, um problema central dos abusos sexuais é o abuso de poder. O modo como eu vivo a minha sexualidade fala também da minha pessoa e da minha relação com o poder: necessidades, dinâmicas e atitudes.
Durante um certo tempo, nalgumas regiões da Igreja universal, o papel do sacerdote foi de tal modo exaltado que não era possível avaliar criticamente a pessoa e a personalidade que estaria por detrás. Alguns padres acreditam que simplesmente por vestir as vestes adequadas se tornam pessoas completamente distintas, com prerrogativas muito superiores àquelas que correspondem a uma pessoa «normal». O papel do sacerdote, ou pelo menos o que se entende por tal, torna-se de tal modo determinante que a pessoa individual que o desempenha assume todas as suas forças, mas sobretudo e de modo quase inconsciente as suas fraquezas, limitações e carências. Com isso, a capacidade de limitar as próprias aspirações, de experimentar as próprias necessidades e de submeter-se à crítica honesta diminuem proporcionalmente. No entanto, a evolução dos últimos anos contribuiu para que, em geral, sejam postos em causa aqueles que se pensava intocáveis. Questionar os padres, a diversos níveis, deixou de ser um tabu.
Todos os estudos científicos realizados, e comissionados por diversos governos, afirmam: o celibato só por si não conduz ao abuso. Apesar disso, a forma de vida celibatária torna-se um fator de risco quando a vida sacerdotal entra em crise.
Os abusos sexuais estão de algum modo relacionados com o celibato? Como é que a castidade mal vivida pode conduzir ao abuso?
Todos os estudos científicos realizados, e comissionados por diversos governos, afirmam: o celibato só por si não conduz ao abuso. Apesar disso, a forma de vida celibatária torna-se um fator de risco quando a vida sacerdotal entra em crise. Um dos resultados dos estudos realizados na Alemanha afirma: a idade média do sacerdote que abusa pela primeira vez é de 39 anos. Se olharmos para a prática tradicional segundo a qual se era ordenado aos 25 anos, concluímos que o perpetrador teria sido padre durante cerca de 15 anos, em média, antes de cometer o primeiro abuso. Se compararmos com abusadores no meio escolar, desportivo e familiar, esses são condenados por abusos pela primeira vez, em média, aos 25 anos. No caso dos sacerdotes, pode-se concluir, portanto, que a integridade moral durou alguns anos e depois começou a desmoronar quando, possivelmente, a solidão, o excesso de trabalho, a incapacidade de construir amizades e outros fatores foram entrando em jogo.
Tendo isto presente, torna-se clara a necessidade, no momento da admissão dos seminaristas e candidatos às ordens, de examinar cuidadosamente a aptidão para uma vida celibatária, durante a formação, de fornecer os devidos instrumentos, e, sobretudo, depois da ordenação de proporcionar à pessoa um acompanhamento adequado.
Parece-me demasiado unidimensional limitar o debate à orientação sexual.
Outra associação que às vezes é feita é com a homossexualidade. Existe alguma base para tal?
Já em 2010 o Monsenhor Charles Scicluna, então responsável pelo tema dos abusos na Congregação para a Doutrina da Fé (organismo do Vaticano encarregado de julgar os casos de abusos), disse que entre os casos de abusos perpetrados por padres, 10% diziam respeito a pedofilia (atração erótico-sexual por crianças) e 90% efebofilia (atração erótico-sexual por jovens). Destes 90%, 70-80%, na sua opinião, seriam relativos a abusos de vítimas rapazes. Números semelhantes encontram-se em todos os estudos.
No entanto, não é de todo claro que agressões homossexuais sejam sempre sinal de uma tendência homossexual. No passado, pelo menos, a situação era tal que, por exemplo, os padres tinham muito pouco contacto direto com raparigas. Os acólitos eram rapazes, nas escolas os padres ensinavam principalmente a rapazes e também as atividades com jovens eram maioritariamente separadas.
A questão do abuso sexual, na minha opinião, não está na orientação sexual, mas antes no abuso de poder. O modo como eu lido com a minha sexualidade diz algo da minha personalidade e da sua relação com o poder: as minhas necessidades, os meus processos internos e atitudes de fundo. Parece-me, portanto, demasiado unidimensional limitar o debate à orientação sexual.
Crédito foto de capa: Rebecski – Own work, CC BY-SA 4.0
Competências da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores
Os membros da Comissão concentram os seus esforços em seis áreas concretas:
(1) Prioridade ao cuidado e à cura das vítimas/sobreviventes e suas famílias;
(2) dar orientações exaustivas nas Igrejas locais para garantir a segurança de menores e adultos vulneráveis;
(3) formação para líderes e comunidades eclesiais;
(4) formação inicial e contínua em matéria de proteção de menores para membros do clero e religiosos;
(5) teologia e espiritualidade;
(6) normas civis e canónicas que disciplinam a proteção de menores.
Nos seus primeiros cinco anos, a Comissão participou em mais de 300 ações formativas nos seis continentes e na Santa Sé para fomentar a tomada de consciência do impacto criado pelos abusos sexuais de menores e ajudar as Igrejas locais a adotar práticas para evitá-los.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.