Discernimento Moral Cristão: Inclusividade, Identidade e Unidade na Igreja

Esta reflexão vai ser publicada em três partes, em dias diferentes, e pretende aprofundar temáticas como a Inclusividade, a Identidade e a Unidade na Igreja. A primeira parte, hoje divulgada, aprofunda o tema da inclusão.

Esta reflexão vai ser publicada em três partes, em dias diferentes, e pretende aprofundar temáticas como a Inclusividade, a Identidade e a Unidade na Igreja. A primeira parte, hoje divulgada, aprofunda o tema da inclusão.

Introdução
Os tempos que estamos a viver são, como sabemos, tempos de profundas mudanças no nosso mundo. Sendo formada por homens e mulheres de cada tempo, é natural que também a Igreja possa ir sofrendo transformações no seu modo de viver. A mudança é, de resto, algo que não só encontramos sem dificuldade na longa história da Igreja, como parece até fazer parte da própria identidade da dinâmica cristã (que, além de nos desafiar a uma contínua conversão, convida-nos também a um constante aprofundamento da nossa vivência cristã, em todas as suas consequências).

Verdadeiros aprofundamentos, porém, apenas serão possíveis quando fiel e visivelmente fundados Naquele que nos propomos seguir: Jesus Cristo. É, de resto, apenas em torno Dele e da sua palavra que o grande número de pessoas que formam a Igreja (em tão grande diversidade de perspetivas e de contextos culturais) pode encontrar razões e sentido para se congregar.

Este artigo visa recordar alguns dos pontos que poderão ser importantes para um discernimento em Igreja de caminhos a explorar no futuro, realçando a tensão que terá de existir entre conceitos como inclusividade, identidade ou unidade na Igreja.

O texto é formado por um total de 14 parágrafos e está dividido em três partes, as quais irão ser sucessivamente publicadas no Ponto SJ (dia 5, 9 e 12 de maio).

 

Parte 1 (dia 5 de maio)

1. Jesus, Mestre de inclusividade
2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto
3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’
4. Como discernir? O valor da consciência humana individual
5. O risco dos discernimentos individualistas
6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo

 

Parte 2 (dia 9 de maio)

7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?
8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta?
9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados
10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

 

Parte 3 (dia 12 de maio)

11. Documentos oficiais da Igreja
12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja
13. Tensões e unidade dentro da Igreja
14. Discernindo o caminho em Igreja

 

1. Jesus, Mestre de inclusividade
Uma das questões a que na nossa cultura de hoje parece ser bastante mais sensível é o problema da discriminação. Trata-se de um problema que está longe de ser novo: pelo contrário, parece ser quase tão antigo como a própria Humanidade. Felizmente, as nossas sociedades hoje parecem estar mais conscientes da questão das discriminações. E, pelo menos em alguns casos, a procurar ultrapassá-las.

Inegável parece ser, entretanto, a grande mudança que surge a partir de Jesus, graças ao seu modo de viver e de olhar as pessoas. Na verdade, a questão da dignidade de cada ser humano individual tinha sido levantada já no primeiro livro do Antigo Testamento: a pessoa humana era então referida como “imagem e semelhança de Deus” (Gen 1,26). A partir de Jesus, torna-se ainda mais claro que a “aceção de pessoas” não tem cabimento, já que Jesus nos faz filhos do mesmo Pai, irmãos uns dos outros (cfr. Lc 20,21, Mt 23,8-9).

As atitudes que vemos Jesus ter repetidamente para com os marginalizados do seu tempo confirmam isso mesmo: Jesus acolhe todos os que vêm ao seu encontro e que O queiram seguir. Mais do que isso, é Jesus que vai ao seu encontro. Não importa quem sejam, de onde venham, ou como tenham vivido antes: para Jesus todos são bem-vindos. Podemos então dizer que Jesus é Mestre também naquilo a que hoje apelidamos de ‘inclusividade’.

As atitudes que vemos Jesus ter repetidamente para com os marginalizados do seu tempo confirmam isso mesmo: Jesus acolhe todos os que vêm ao seu encontro e que O queiram seguir. Mais do que isso, é Jesus que vai ao seu encontro. Não importa quem sejam, de onde venham, ou como tenham vivido antes: para Jesus todos são bem-vindos. Podemos então dizer que Jesus é Mestre também naquilo a que hoje apelidamos de ‘inclusividade’.

2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto
Ao mesmo tempo, para Jesus não é certamente tudo igual. Jesus sonha e entrega-Se por um projeto concreto, a que Ele chama “a construção do Reino de Deus”, seu Pai. E sabe que, para que esse sonho se torne uma realidade, haverá coisas que ajudam… e coisas que não ajudam. Ou seja, para Jesus nem todos os caminhos são caminhos de construção de felicidade, ou realização humana: pelo contrário, há caminhos que são mesmo de destruição. Por isso mesmo, a quem vai encontrando no seu caminho, Jesus propõe um caminho bem concreto: “segue-Me”.

Para alguns (por exemplo, pessoas que sigam por caminhos mais ecléticos, ou mais a um estilo new age) talvez o próprio Jesus e a sua proposta possam aparecer como algo ‘demasiado concreto’: talvez tais pessoas possam ter preferência por algo de mais indefinido, onde a própria imagem de Deus é mais deixada no vago, entendida de acordo com aquilo que cada um sente e experiencia em cada momento.

Se quero ser cristão, porém, se quero de facto seguir Jesus, não só não posso ficar simplesmente como estou (imóvel, parado), como também não serei propriamente eu a determinar o caminho a seguir. Porque, de facto, não é o discípulo que diz a Jesus para que Ele o siga, mas sim Jesus que convida e indica o caminho (caminho que, aliás, Ele Mesmo percorre primeiro).

3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’
Para Jesus, como sabemos, não é tudo igual: nem tudo tem o mesmo valor. Estaríamos, por isso, a entender certamente mal as coisas, se afirmássemos que ‘ser inclusivo’, ou ‘não discriminar’, implica aceitar como equivalentes todos os tipos de comportamentos ou todos os estilos de vida (o que, aliás, se revelaria contraditório: discriminar as pessoas, por exemplo, não pode ser um comportamento aceitável para quem rejeite a discriminação).

Na verdade, o problema da discriminação não terá tanto a ver com comportamentos, mas sobretudo com pessoas. Ou seja, de acordo com Jesus, somos chamados a não discriminar pessoas. Mas, no que diz respeito a comportamentos, não poderemos já dizer o mesmo.

Porque, de facto, uma questão é o ‘de onde vimos’. E outra questão, já bem diferente, é o ‘para onde queremos ir’. Jesus, na verdade, não parece ter muito interesse em aprofundar o percurso passado de uma pessoa, ou em saber de onde ela vem, que tipos de comportamento teve, que estilo de vida viveu. Mas já não podemos certamente dizer que não Lhe interesse o ‘para onde’ essa pessoa está a apontar para ir no futuro, que caminhos pretende percorrer. E isto, precisamente, porque há comportamentos ou estilos de vida que Ele valoriza (e outros que não tanto).

Porque, de facto, uma questão é o ‘de onde vimos’. E outra questão, já bem diferente, é o ‘para onde queremos ir’. Jesus, na verdade, não parece ter muito interesse em aprofundar o percurso passado de uma pessoa, ou em saber de onde ela vem, que tipos de comportamento teve, que estilo de vida viveu. Mas já não podemos certamente dizer que não Lhe interesse o ‘para onde’ essa pessoa está a apontar para ir no futuro, que caminhos pretende percorrer. E isto, precisamente, porque há comportamentos ou estilos de vida que Ele valoriza (e outros que não tanto).

4. Como discernir? O valor da consciência humana individual
Pelo menos em parte, talvez como reação aos acontecimentos trágicos do século XX, parece ser hoje grande o valor atribuído ao indivíduo, a cada ser humano individual. Talvez por ter bem consciência dos desastres a que os totalitarismos sociais (de direita e de esquerda) nos conduziram no século passado, o respeito por cada indivíduo humano parece ser hoje, felizmente, um do traço essencial da nossa cultura atual (pelo menos a nível de princípios).

O reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana está, como vimos, em sintonia com os valores de uma cultura judaico-cristã. Como atrás referido, esta vê em cada ser humano uma imagem e semelhança do divino. Por isso o Concílio Vaticano II defende que a “dignidade da consciência moral” de cada um deve ser por todos reconhecida, o que exige que cada pessoa possa proceder livremente, e “segundo a própria consciência” (cfr. Gaudium et Spes 16-17).

5. O risco dos discernimentos individualistas
Ao mesmo tempo, o mesmo texto do Concílio reconhece também que a consciência pessoal de cada um pode também errar. Uma das principais preocupações de uma consciência que queira acertar será, pois, a de procurar a sua própria formação: de reconhecer que, para distinguir o bem do mal, precisará de aprender – e, desde logo, de aprender com outros: com outras consciências humanas (não apenas com a sua).

Um paradigma meramente individual acabará, portanto, por reduzir significativamente as possibilidades de um autêntico discernimento ético. De facto, uma pessoa só, fechada em si mesma, dificilmente conseguirá ultrapassar os limites da sua própria subjetividade (aliás, por alguma razão diz o povo que “ninguém é bom juiz em causa própria”).

Um paradigma meramente individual acabará, portanto, por reduzir significativamente as possibilidades de um autêntico discernimento ético. De facto, uma pessoa só, fechada em si mesma, dificilmente conseguirá ultrapassar os limites da sua própria subjetividade (aliás, por alguma razão diz o povo que “ninguém é bom juiz em causa própria”).

De facto, a simples valorização do indivíduo apenas (entendendo-o como que separado de outros) parece claramente insuficiente para uma visão cristã da pessoa humana, já que a dimensão de relação com outros é entendida como intrínseco ao próprio ser humano (criado à imagem de um Deus-Trindade). Aliás, o próprio sentido da vida de cada ser humano não se entenderá, sem essa dimensão social: os seus horizontes de vida não podem restringir-se à mera auto-referencialidade, nem os seus objetivos restringirem-se à simples auto-expressão e auto-realização (ou aos próprios anseios e desejos). Caso contrário, como Jesus nos alerta, em vez de nos conduzirem à vida, tais caminhos acabarão por conduzir-nos inevitavelmente ao sem-sentido e à frustração (Mc 8,35).

Por outro lado, um paradigma de tipo individualista dificilmente poderá conduzir à relação com o Deus “vivo e verdadeiro”: pelo contrário, mais facilmente poderá levar à criação de um ídolo, de um ‘deus’ feito afinal à medida do próprio eu (e até ao encerramento numa espiritualidade solipsista). Não pode Deus ser encontrado dentro de nós mesmos, no nosso coração? Certamente que sim. Porém, para os cristãos, Deus pode ser encontrado também, e de igual modo, no coração dos outros.

A este respeito, talvez possa ser revelador um comentário que, a propósito do sacramento da reconciliação (confissão), se ouve por vezes dizer: “Eu confesso-me ‘diretamente’ a Deus”. De um ponto de vista cristão, afirmações deste tipo poderão ser bastante questionáveis – sobretudo se baseadas no pressuposto que Deus pode ser encontrado apenas no próprio coração, na própria subjetividade… e, portanto, não tanto na subjetividade de outros – nem sequer dos que foram escolhidos para representar a comunidade cristã (cfr. Lc 6,13: de entre os muitos discípulos que O seguiam, Jesus quis intencionalmente destacar doze).

6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo
Na linha da valorização de cada indivíduo humano, são também hoje frequentes os convites a que cada um possa ser ‘autêntico’, ou até ‘espontâneo’, de acordo com aquilo que cada qual alegadamente ‘é’. “Segue o que sentes” parece ser um dos slogans dos nossos dias. Mas que posso dizer eu daquilo que ‘sou’ verdadeiramente, se dentro de mim testemunho haver mais do que uma coisa só (e mais ainda em momentos diferentes)? Que poderei revelar como o meu ‘eu autêntico’, se dentro de mim se encontrar não uma só, mas várias tendências e dinâmicas (algumas até contraditórias entre si)?

Na verdade, do ponto de vista cristão, uma simples ‘espontaneidade’ (de acordo com o que, em cada momento, se sente) dificilmente pode ser considerada como suficiente. Ou poderei dizer que são sempre puros e bons todos os apelos ou impulsos que brotam dentro de mim? Ou poderei dizer que, a tudo o que surge na minha mente ou no meu coração, eu quero dar seguimento e concretizar, sem mais? Talvez fosse esse o caso, se o nosso mundo não tivesse sido marcado também pela realidade do pecado. Mas sabemos bem que a realidade não é essa. E sabemos também que o pecado pode limitar o nosso próprio modo de ler e de entender a realidade. De facto, o atrás citado documento do Vaticano II reconhece não apenas que a consciência pessoal pode errar, mas também que o hábito do pecado pode ir progressivamente “cegando” essa mesma consciência (GS 16). Daí a necessidade de transformação (ou ‘conversão’), proclamada por tantos profetas até João Batista. E, finalmente, também pelo próprio Jesus.

A nível da espiritualidade inaciana, logo ao definir o que entende por “Exercícios Espirituais”, Inácio de Loiola refere a necessidade de “ordenar os afetos” (EE[1],[21]). A própria estrutura dos Exercícios reflete essa necessidade, ao incluir logo nos seus inícios (na ‘primeira semana’) aquilo que, na tradição clássica, se chamava a ‘via purgativa’. Só depois de se ter percorrido esta primeira ‘semana’, propõe Inácio que se avance para as ‘semanas’ seguintes (correspondentes à ‘via iluminativa’ e à ‘via unitiva’).

A nível da espiritualidade inaciana, logo ao definir o que entende por “Exercícios Espirituais”, Inácio de Loiola refere a necessidade de “ordenar os afetos” (EE[1],[21]). A própria estrutura dos Exercícios reflete essa necessidade, ao incluir logo nos seus inícios (na ‘primeira semana’) aquilo que, na tradição clássica, se chamava a ‘via purgativa’. Só depois de se ter percorrido esta primeira ‘semana’, propõe Inácio que se avance para as ‘semanas’ seguintes (correspondentes à ‘via iluminativa’ e à ‘via unitiva’).

E, no entanto, talvez por no passado se ter insistido demais (ou até de um modo moralista, e não-cristão) na realidade do pecado, nos dias de hoje, este tema dos “afetos desordenados” parece ser um pouco mais difícil de se levantar, e de ser tratado de uma maneira construtiva e saudável. De facto, como vimos, de acordo com a cultura atual, mais facilmente é estimulado simplesmente um (mal-entendido) desejo de ‘autenticidade’, convidando a que cada pessoa seja simplesmente ‘aquilo que é’ (em cada momento), sem mais.

Inácio prevê que a primeira semana dos Exercícios Espirituais possa ser dada sem as seguintes; mas a inversa já não é verdadeira (cfr. EE [18]). De facto, uma vez que os Exercícios estão essencialmente estruturados para que o participante possa tomar decisões, fazer escolhas em liberdade, propor as semanas seguintes, sem que o participante tenha verdadeiramente passado pela primeira semana (sem procurar antes “ordenar os afetos”), acarretará então, naturalmente, o (clássico) risco de querer “que Deus venha direito às suas afeições desordenadas” (cfr. EE [169]). Talvez por isso, já séculos antes Paulo chamava a atenção para o perigo de usar a liberdade como meio para satisfazer os próprios apetites (Gal 5,13). E Pedro advertia para o risco de a liberdade ser utilizada como pretexto para se fazer o mal (1ª Ped 2,16).

Se queremos verdadeiramente discernir o que fazer, ou deixar de fazer, dificilmente poderemos, pois, ficar entregues apenas a nós próprios: para que possamos optar por caminhos que conduzam a mais vida, precisamos que as nossas escolhas tentem estar fundadas também em referências que transcendam o limitado espaço da nossa subjetividade. Para os cristãos, como sabemos, a vida e as palavras de Jesus são a grande referência que nos aponta para “caminhos de vida” e “de eternidade” (Sl 16 e Sl 139).

(continua… a 2ª Parte do artigo pode ser consultada aqui)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.