Como amanhecer uma noite

Santa Teresinha descobriu a fé mais simples e humilde, a vida verdadeira da entrega e da confiança. Descobriu um caminho de confiança e amor que colhe todo o coração do Evangelho: não importa a fraqueza própria, Cristo conduz-nos ao Pai.

Santa Teresinha descobriu a fé mais simples e humilde, a vida verdadeira da entrega e da confiança. Descobriu um caminho de confiança e amor que colhe todo o coração do Evangelho: não importa a fraqueza própria, Cristo conduz-nos ao Pai.

No dia 15 de outubro o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica C’est la confiance, “sobre a confiança no amor misericordioso de Deus”. Escreveu-a à sombra do olhar atento de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. Imagino – porque a experiência assim me vai confirmando – que dos olhos de Teresa tenha descido até ao Papa Francisco a graça da confiança em Deus, aquela graça que basta para a sua firmeza em tempo de ventos fortes.

O Papa apresenta-nos Santa Teresinha como imagem da confiança em Deus, ao abrir a Exortação com as suas palavras: É a confiança e nada mais que a confiança que nos deve conduzir ao Amor. “Não há outra via que devamos percorrer para ser conduzidos ao Amor que tudo dá” (C’est la confiance, 2).

A confiança de Teresa nasce de uma escolha que gravou no coração e na parede da cela: “Jesus é o meu único amor”. Uma escolha e não um sentimento momentâneo: a confiança de Teresa é feita de uma santa teimosia em perseverar e sorrir na face da escuridão.

Bem sei que a imagem de “santinha” floral que, muitas vezes, associamos a Santa Teresinha parece contrastar com esta última afirmação. Mas isto que escrevo escreveu-o Teresa, não sem ironia, à Madre Maria de Gonzaga (superiora do Carmelo de Lisieux): “Preciso que conheçais todos os segredos da minha alma para não sorrirdes ao ler estas linhas. Com efeito, julgando pelas aparências haverá alma menos provada do que a minha? Ah! Que surpresa para muitos se o martírio que sofro há um ano se tornasse manifesto!” (do Manuscrito C (ms C), dirigido à Madre Maria Gonzaga, que é o último dos seus três manuscritos autobiográficos, A, B e C).

A confiança de Teresa nasce de uma escolha que gravou no coração e na parede da cela: “Jesus é o meu único amor”. Uma escolha e não um sentimento momentâneo: a confiança de Teresa é feita de uma santa teimosia em perseverar e sorrir na face da escuridão.

Este martírio é uma grande escuridão interior e tentação contra a fé. Teresa escreve que tinha “grandes provações interiores de todas as espécies, até me interrogar, por vezes, se haveria Céu” (ms A). E, noutro momento, “Quando canto a felicidade do Céu, a posse eterna de Deus, não sinto nenhuma alegria, porque canto simplesmente o que quero acreditar” (ms C).

Mas Teresa sabia que, para Deus, o pano das trevas era bordado a fio de luz. A sua provação não era um erro no sistema. Teresa não pensa que, por ter dado a vida a Deus, merece uma vida sem dificuldades. Não cai no erro de pensar que a vida verdadeira de quem segue a vontade de Deus é sinónimo de uma vida sem cruz e sem custo. A escuridão não é sinal de uma falta de vocação carmelita, mas antes uma confirmação do seu caminho de união a Cristo: “para que seguindo-me na pena, também me Siga na glória” (EE 95).

Tendo dado tudo a Cristo, compreende que para o fogo do Seu amor não há sobras: tudo deve ser consumido, até as consolações e a luz. “Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo” (Poesia 54) e, quem dá tudo porque ama olha o vazio como sinal de amor.

Por isso considera o seu vazio “uma grande graça” e descobre-o como lugar da verdadeira confiança. Não é uma confiança óbvia, fruto de um bem estar sensível. É uma confiança provada, purificada das impurezas como o ferro no fogo.

É fácil confiar quando temos todas as razões para estar confiantes, mas quando se retira tudo a confiança torna-se um tipo de fidelidade de fundo, uma decisão de esperar contra a esperança (Rm 4, 18). Assim, Teresa descobre uma fé verdadeira, uma persistência teimosa em Cristo que permite o crescimento na verdadeira confiança. A “pequena” Teresa agarra-se à fé que sente não ter e escolhe confiar em Deus, mesmo sem consolações, sem sentir a sua presença. Escolhe acreditar a nu, numa confiança crua. E isto não é “força própria”, mas graça que Deus dá a quem pede.

Apesar desta provação que lhe tira todo o gozo (ms C) é capaz de dizer, no início do seu último mês de vida na terra, “Choro pelas delicadezas de Deus para comigo (…) Interiormente continuo sempre na provação…mas também na paz” (08/09/1897, Caderno Amarelo).

Descobriu que por si só é incapaz da firmeza e da perseverança. A sua vitória não está na auto-confiança nem em fiar-se das próprias capacidades. “Todas as nossas justiças têm manchas aos vossos olhos. Quero, portanto, revestir-me com a vossa própria Justiça e receber do vosso Amor a posse eterna de Vós mesmo”, escreveu Teresa no seu Oferecimento ao amor misericordioso de Deus. Ter aquilo que deseja (o Céu, a “posse eterna” de Cristo) não depende de méritos pessoais: se assim fosse, ninguém seria santo. A confiança vai além de qualquer mérito. “É este o seu ensinamento: como não podemos ter qualquer certeza olhando para nós mesmos, é impossível estar seguro de possuir méritos próprios” (C’est la Confiance, 19).

É neste ponto que a vida de Santa Teresinha é uma mensagem para um mundo, por vezes, carregado de autorreferencialidade, onde a única forma de “vencer” e superar o que quer que seja parece ser a confiança nas próprias forças.

É neste ponto que a vida de Santa Teresinha é uma mensagem para um mundo, por vezes, carregado de autorreferencialidade, onde a única forma de “vencer” e superar o que quer que seja parece ser a confiança nas próprias forças. Ao invés, Teresa “vence” precisamente porque, conhecendo a estreiteza das próprias forças, se abandona a Deus. Bem sabe que ninguém amanhece uma noite fora de horas, com as próprias mãos. É preciso esperar a manhã.

Apesar da sua tendência à hiper-sensibilidade e da experiência de uma depressão profunda na infância, após a morte da mãe e da entrada no convento da irmã mais velha, o caminho espiritual que traça liberta-a de toda a autorreferencialidade.

Experimentar a própria fraqueza, sob o olhar da misericórdia, liberta-a. O reconhecimento da própria fragilidade não se transforma em pena de si própria; o sofrimento não é um erro no sistema, mas um lugar de união Àquele que a ama: une-se à cruz e, pelo seu desejo missionário, une-se àqueles que vivem sem fé. Paradoxalmente, a falta de consolação na sua vida espiritual, imersa na escuridão profunda, atiram-lhe o coração para o Céu.

O seu reconhecimento da própria limitação é muito diferente de uma autocomiseração derrotista, exatamente porque nem a sua confiança nem a sua força estão em si: volta-se para Deus, o único que é a força, livre de qualquer tipo de autorreferencialidade.

O seu reconhecimento da própria limitação é muito diferente de uma autocomiseração derrotista, exatamente porque nem a sua confiança nem a sua força estão em si: volta-se para Deus, o único que é a força, livre de qualquer tipo de autorreferencialidade.

Essa autocomiseração não é senão um tipo de “orgulho ao contrário”: em vez de uma fixação na própria capacidade, é uma fixação na própria incapacidade que, se não conduz a uma altivez arrogante (como a primeira), conduz a um derrotismo mórbido, a uma incapacidade de viver a liberdade, a um calculismo obsessivo que tanto evita as decisões profundas como mina a fidelidade ao caminho começado.

Confiando profundamente em Deus, apesar de não o poder saborear agora, Teresa volta-se constantemente para Aquele cuja Face procura “num país coberto por um espesso nevoeiro” (ms C), não movida pelo desejo de ver a sua luz na terra, mas pelo desejo de a possuir no Céu. Vive a partir da meta! Ainda na escuridão, o coração é todo ele uma madrugada. Ainda a noite lhe não chegou à boca, já as estrelas lhe ardem na voz!

Descobriu a fé mais simples e humilde, a vida verdadeira da entrega e da confiança. Descobriu um caminho de confiança e amor que colhe todo o coração do Evangelho: não importa a fraqueza própria, Cristo conduz-nos ao Pai quando nos abandonamos a Ele. E abandonarmo-nos significa viver em plena confiança humilde, “conscientes mas esquecidos” da própria fraqueza e pecado. O amor misericordioso já os queimou.

Assim, “ela pode ajudar-nos a redescobrir a simplicidade, o primado absoluto do amor, da confiança e do abandono, superando uma lógica legalista e moralista que enche a vida cristã de obrigações e preceitos, e congela a alegria do Evangelho” (C’est la confiance, 54).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.