Acompanhar a mudança de época

Nesta época custosa e promissora de mudança de época, também a nós, Igreja em Portugal, serve a sabedoria e a profecia do estilo franco de ser cristão. Hospitalidade franca; franqueza de escuta, de pensamento e palavra, de vida descentrada.

Nesta época custosa e promissora de mudança de época, também a nós, Igreja em Portugal, serve a sabedoria e a profecia do estilo franco de ser cristão. Hospitalidade franca; franqueza de escuta, de pensamento e palavra, de vida descentrada.

Não se leva a sério a mudança deixando tudo como antes

Todo o tempo é composto de mudança, é certo. Mas o nosso tem a particularidade de se constituir como mudança de tempo. Esta será a grande diferença dos tempos que são os nossos e o desafio incontornável que constituem, em concreto, para a Igreja Católica. «Pode dizer-se que hoje não vivemos uma época de mudanças, mas uma mudança de época», reconhecia o Papa Francisco, em 2015, no encontro com os participantes do V Congresso da Igreja Italiana, em Florença. Não é um jogo de palavras. É um dado, de facto, a assumir. Em 2019, num discurso à Cúria Romana, retomava a mesma expressão, para acrescentar que «nos encontramos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e de elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência». Fecha-se um longo ciclo histórico, deixando entrever a progressiva formação de um outro, com características radicalmente novas. Como consequência, «não basta viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo mas, depois, permanecer como se era antes». De pouco serve fazer de conta, na ilusão cómoda de que a fidelidade estaria em deixar tudo na mesma. Também não serve reciclar respostas dadas no passado para responder a buscas e a questões novas que se colocam hoje. Francisco tem bem claro que o vinho novo pede, de facto, odres novos. Este exercício necessário não parte, porém, do lamento de supostas ofensas à verdade evangélica ou de perdas infligidas de fora à identidade, à tradição ou à autoridade da Igreja – Francisco mostra saber que é fácil, a partir de dentro, fazer degenerar a verdade em ideologia, a identidade em subcultura arrogante e marginal, a tradição em idealização e imobilismo, a autoridade em autorreferencialidade e arbitrariedade. Pelo contrário, a procura de odres novos parte da convicção crente de que escutar mais atentamente e perscrutar mais livremente a mudança de época que atravessamos é o caminho mais longo que a Igreja tem que percorrer para poder escutar melhor a Palavra de Deus, compreender melhor quem é, testemunhar mais radicalmente o Evangelho e anunciá-lo de modo mais fiel ao mundo. Para a Igreja, compreender o Evangelho e compreender-se nesta mudança de época é condição do anúncio. Não sendo, por isso, problema ao qual fugir ou agressão da qual se defender, a mudança começa por se apresentar como dado a gerir com responsabilidade. Por razões teológicas ainda mais estruturais, cabe assumi-la em liberdade – e com alegria – como tempo favorável para processos eclesiais inéditos e inauditas expressões de autenticidade e de fecundidade evangélica. Como declarou João XXIII no leito de morte, «não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo um pouco melhor». Graças, precisamente, às mudanças que os tempos geram.

Este exercício necessário não parte, porém, do lamento de supostas ofensas à verdade evangélica ou de perdas infligidas de fora à identidade, à tradição ou à autoridade da Igreja – Francisco mostra saber que é fácil, a partir de dentro, fazer degenerar a verdade em ideologia, a identidade em subcultura arrogante e marginal, a tradição em idealização e imobilismo, a autoridade em autorreferencialidade e arbitrariedade.

Com o fim da modernidade termina uma época da Igreja Católica

Quando, em 2020, se assinalavam sete anos de pontificado, introduzindo o livro coletivo Profezia di Francesco. Traiettorie di un pontificato (Profecia de Francisco. Trajetórias de um pontificado), o teólogo Marcello Neri identificava como marca, não só distintiva, mas operativa do pontificado atual, esta «consciência histórica do fim de alguns processos seculares e do início de outros que estão a conduzir a transformações profundas da socialidade humana e da antropologia moderna». Acrescentava que «Francisco age e pensa a Igreja precisamente a partir dessa consciência incómoda: a modernidade, como europeização do mundo e de tudo o que isso inclui, já acabou há quase um século». E porque a Igreja vivera uma relação dialética com a modernidade essencialmente de conflito, relação que marcou e modelou profundamente o seu olhar sobre o exterior e a organização das instituições internas – se a modernidade era, à partida, anti-cristã, a Igreja deveria ser, de fundo, anti-moderna –, «o fim da modernidade também significa chegar ao término de uma época da Igreja Católica». É por isso que «Francisco já não pensa e já não age como se a modernidade ainda existisse» e é por isso que «começa a delinear uma visão da Igreja e do catolicismo coerente com a efetividade histórica dentro da qual se deve projetar a fidelidade ao evangelho do Reino e à criação desejada por Deus». E esta fidelidade «já não pode ser unívoca nem uniforme, a mesma e idêntica onde quer que a fé se encontre a ser vivida no quotidiano dos homens e das mulheres de hoje». A consciência da história implica, necessariamente, consciência da pluralidade e valorização das especificidades culturais. Daqui resulta a decisão deliberada e determinada do Papa Francisco de «apoiar a saída da Igreja Católica da luta contra os moinhos de vento da modernidade, reativando, no coração institucional da Igreja, a dinâmica original da boa nova evangélica de Deus. Por muito tempo, a condição histórica permitiu que o catolicismo latino (aquele que se espalhou por todo o mundo) construísse um aparato conceptual, institucional, canónico e pastoral que podia renunciar formalmente ao corpo a corpo quotidiano com as Escrituras testemunhais». Ora, a condição histórica atual já não o permite. Graças a Deus, podemos acrescentar. Afinal, o que parecia perda para a Igreja, revela-se ganho. Desde logo, a possibilidade de recuperar uma relação mais livre e mais vital, quer com o Evangelho, com menos glossas, quer com a humanidade real, com menos abstrações e idealizações.

Daqui resulta a decisão deliberada e determinada do Papa Francisco de «apoiar a saída da Igreja Católica da luta contra os moinhos de vento da modernidade, reativando, no coração institucional da Igreja, a dinâmica original da boa nova evangélica de Deus.

O anúncio do Evangelho implica atenção aos destinatários

Entretanto, assumindo a consciência histórica desta mudança de época, importa dar o corpo ao manifesto, fazendo apelo e implicando não só o “corpo” de cada cristão – a tendência continua a ser para sobrecarregar a boa vontade e o empenho de cada cristão individualmente –, mas necessariamente o “corpo” de comunidades cristãs e da Igreja inteira, com as suas múltiplas relações e interações internas e com o fora de si mesma.

Para isso, é necessário reavivar e atuar o princípio pastoral assumido pelo Concílio Vaticano II, segundo o qual não há anúncio do Evangelho sem ter em conta aqueles a quem se dirige – a sua biografia, a sua cultura – e que neles o Evangelho já está a agir, sendo por isso que o podem compreender na sua própria língua e acolher em liberdade. Depois, cabe assumir a exigência de formulações adequadas e de práticas significativas que garantam o acesso histórico à verdade evangélica, que não se diz sem formulações e práticas histórica e culturalmente situadas, mas que tão pouco se identifica plenamente ou se esgota em qualquer uma delas. Para isso, é preciso aprender, mesmo se com custo, as línguas e as culturas daqueles a quem o anúncio se dirige – como vivem, como falam, como se compreendem, que arte fazem, que ritos cultivam. E são precisas outras palavras, outras articulações, outros conceitos, outras imagens, como serão precisos outros modos de as narrar e de as representar, porque não basta declarar princípios e ensinar conteúdos. Precisam-se narrações, expressões, formas que tenham densidade humana e força espiritual, práticas significativas que façam e que gerem sentido. Fiéis serão os cristãos e as comunidades crentes que, em contacto vivo com o Evangelho, estiverem à altura do ato exigente de tradução da tradição numa sociedade aberta e plural. Ao cristianismo nunca bastaram os copistas. Sempre precisou de tradutores. Nesse mesmo discurso de 2019, o Papa recordava que «fazer apelo à memória não significa ancorar-se na autoconservação, mas recordar a vida e a vitalidade de um percurso em desenvolvimento contínuo. A memória não é estática, mas dinâmica […]: a tradição é a garantia do futuro e não a custódia das cinzas». Mas essa fidelidade não se poderá jogar simplesmente no que diz respeito ao aparato teológico-conceptual ou à promoção de laboratórios performativos. Habitar de forma discernida a mudança epocal em que nos encontramos implica trabalho dedicado sobre o aparato institucional e canónico, que facilmente degenera em rigidez de formas, alheias às dinâmicas do tempo e imunes à complexidade e contraditoriedade da realidade. Como se fossem fins em si mesmos, perdem vitalidade generativa e força profética. A Igreja terá de ousar discernir quais as mediações institucionais e os ministérios que melhor servirão a sua missão hoje, com a liberdade de quem sabe que não brilha de luz própria, mas reflete a luz que lhe vem de Cristo. Quando se clarifica o fim, mais livremente se identificam os meios, uns para abraçar, outros para deixar. Tendo presente os quatro sonhos apresentados em Querida Amazónia, seria sinal de inautenticidade se o sonho eclesial se tornasse pesadelo ou, então, se dissipasse, quando se promove empenhadamente o sonho social, cultural e ecológico. Pedir-se-ia fora o que não se ousa dar dentro. Seria, por isso, difícil de aceitar que o amplo processo sinodal para o qual o Papa Francisco convocou a Igreja inteira – todos os níveis da Igreja, envolvendo todo o povo de Deus: leigos, pastores, Bispo de Roma –, em torno do tema Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, não chegasse a dizer algo de relevante e a gerar reformas também ao nível do edifício institucional e da lei canónica.

É preciso aprender, mesmo se com custo, as línguas e as culturas daqueles a quem o anúncio se dirige – como vivem, como falam, como se compreendem, que arte fazem, que ritos cultivam. E são precisas outras palavras, outras articulações, outros conceitos, outras imagens, como serão precisos outros modos de as narrar e de as representar, porque não basta declarar princípios e ensinar conteúdos.

Desafios para a Igreja portuguesa

Para a Igreja portuguesa, o desafio é grande. A conservação de modelos pastorais e institucionais gastos, por vezes já sem convicção, mas também sem desprendimento nem energia para os pôr em causa e ousar eleger e implementar novos; a repetição rotineira de práticas que pouco dizem às novas gerações, mas mesmo a gerações mais velhas, ou o jargão  eclesial que, para muitos, passou a ser linguagem estranha e, mais grave, sem densidade humana, relevância existencial ou alcance espiritual; o desencontro que, por vezes, chega a ser contradição, entre o registo pastoral no acompanhamento pessoal de realidades humanas complexas e o registo doutrinal e canónico abstrato: quando as coisas são lineares, usa-se o registo personalista, mas, quando se tornam problemáticas, impõe-se o doutrinal e o canónico; a tendencial estranheza a expressões culturais e a desconsideração de realizações artísticas contemporâneas; a insistência pastoral em coordenadas espaciais e na preservação de espaços, quando ganham sempre mais relevância as coordenadas temporais e as dinâmicas processuais; o envelhecimento de comunidades paroquiais, que, em muitos casos, acompanham o fenómeno do despovoamento de partes do território nacional, e a dificuldade em assumir novas formas de presença nos espaços e dinâmicas urbanas; novos grupos que tendem a fechar-se em bolhas de imunização à complexidade cultural, celebrando a própria identidade e confirmando-se numa suposta superioridade evangélica; a diminuição do clero e a sobrecarga do que existe, para muitos, até à exaustão; uma certa apatia de quem tem autoridade para tomar decisões, que resulta em paralisia diante de problemas sérios e incontornáveis; o encolhimento das congregações religiosas, envelhecidas e a braços com a gestão de pesadas estruturas institucionais e patrimoniais; a pobreza de inteligência teológica e litúrgica na vida pastoral ordinária e a escassez de debate entre entendimentos teológicos distintos: estas, entre outras, serão zonas dolentes do corpo eclesial que se confronta, inevitavelmente, com a mudança de época e que é fortemente atravessado por ela, talvez sem suficiente liberdade, fortaleza de ânimo e sabedoria prática para enfrentar o custo do desafio.

Para a Igreja portuguesa, o desafio é grande. A conservação de modelos pastorais e institucionais gastos, por vezes já sem convicção, mas também sem desprendimento nem energia para os pôr em causa e ousar eleger e implementar novos; a repetição rotineira de práticas que pouco dizem às novas gerações, mas mesmo a gerações mais velhas, ou o jargão  eclesial que, para muitos, passou a ser linguagem estranha e, mais grave, sem densidade humana, relevância existencial ou alcance espiritual.

“Falta-te a franqueza, falta-te o estilo cristão”

Como desatar o nó e promover processos partilhados, mais livres e corajosos, de discernimento, que promovam buscas sérias e consequentes, maturem decisões e garantam fortaleza e constância na sua implementação? O Papa Francisco aponta a parresía: a franqueza.  Sinceridade, autenticidade, honestidade, coragem, liberdade de palavra cuja autoridade vem da procura e exposição à verdade evangélica. Na homilia do dia 18 de abril de 2020, comentava: «Gosto muito de um versículo na Carta aos Hebreus, onde o seu autor se dá conta de que na comunidade está a acontecer alguma coisa, que se está a perder algo, que os cristãos estão a ficar tíbios […] – diz o seguinte: “Lembrai-vos dos primeiros dias, travastes uma luta grande e dura: agora não percais a vossa franqueza” (cf. Hb 10, 32-35). “Recuperai”, recuperai a vossa franqueza, a coragem cristã de seguir em frente. Não se pode ser cristão sem esta ousadia […]. Se não tiveres coragem, se para explicares a tua posição acabares em ideologias ou explicações casuísticas, falta-te a franqueza, falta-te o estilo cristão, a liberdade de falar, de dizer tudo. A coragem!» Nesta época custosa e promissora de mudança de época, também a nós, Igreja em Portugal, serve a sabedoria e a profecia deste estilo franco de ser cristão. Hospitalidade franca; franqueza de escuta, de pensamento e de palavra – os átrios de conversação franca e as mesas de partilha de palavra e de alimentos sempre foram lugares éticos e espirituais de grande fecundidade; franqueza de vida descentrada, na convicção de que, dando atenção às linhas que cosem o nosso tempo, com o seu direito e o seu avesso, e assumindo o risco – a ars vivendi realiza-se como ars moriendi – se acederá mais plenamente e se traduzirá mais fielmente o que se recebeu por graça, o Evangelho da confiança e da esperança.

Repropõe-se, com ligeiras alterações, o Editorial do n. de Março de 2022 da revista Brotéria, vol. 194-3.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.