Fouad Nakhaleh nasceu na Síria numa pequena cidade montanhosa a norte de Damasco, é católico mas habituado, desde criança, a lidar com naturalidade e sem conflitos com as muitas minorias religiosas do seu país. Estudou engenharia em Alepo, onde conheceu os jesuítas. Juntou-se a esta ordem religiosa aos 22 anos e foi ordenado padre a 1 de maio de 2016. É atualmente diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) da Síria.
Fouad conheceu Gonçalo Castro Fonseca, também ele padre e jesuíta, há pouco mais de um ano, quando o português se ofereceu para ir para Síria, depois de se sentir chamado a ser “apóstolo da esperança”. O Ponto SJ juntou-os e ouviu o retrato do que se passa naquele país atravessado pelo conflito, a partir de duas perspectivas diferentes, que se unem num mesmo desejo: levar esperança e crença no futuro àqueles que servem.
Ainda que estivéssemos todos à mesma mesa, fizemos uma entrevista de cada vez, com permissão total para interrupções e achegas. No modo como vão falando, na naturalidade respeitosa com que se interrompem, trocam olhares e sorrisos, na cumplicidade expressa no modo de pensar e sentir, percebe-se mais do que uma amizade própria de quem pertence a um mesmo grupo religioso. Descobre-se neles o companheirismo de quem, no dia a dia, partilha alegrias, tristezas, esperanças e incertezas. Mais do que a uma simples leitura, estas duas entrevistas são um convite a um exercício de escuta, capaz de desafiar algumas ideias pré-concebidas.
Comecemos por ouvir o P. Fouad Nakhaleh, sj
Como compara a vida antes e depois da guerra?
Agora a vida corre com alguma naturalidade, mas não sabemos bem o que é normalidade. Há grandes oscilações na vida social e económica ao longo da história da Síria. Foram acontecendo grandes transformações. Entre 2000 e 2002 houve uma grande evolução em termos económicos, mais oferta de trabalho, o país tornou-se mais aberto. Por volta de 2012 começou a crise e houve uma grande mudança que afetou toda a gente. Muitas fábricas foram destruídas, ou mudadas para outros sítios, começaram a surgir problemas económicos dos quais ainda não recuperamos, deixou de haver emprego. A crise foi muito dura. Não é possível comparar a vida antes e depois.
No contexto atual, qual é o vosso trabalho no JRS? E como é que o facto de ser sírio afeta o seu trabalho?
Já tinha estado antes no JRS mas, desde julho de 2016, sou diretor do JRS Síria. Este trabalho não é fácil, temos muitos projetos diferentes. O mais determinante é saber que os próprios colaboradores e trabalhadores do JRS foram afetados pela guerra. Eu próprio fui afetado, a minha família não esteve sempre segura. Estamos sempre em contacto com pessoas em sofrimento e é muito duro continuar. Para mim, que estou mais na retaguarda, no trabalho de gestão e planeamento, é difícil, mas para as equipas que estão em contacto direto com as famílias, a ouvi-las, tentando resolver os seus problemas, é muito mais. Em 2012 estive envolvido num projeto de terreno, e tínhamos de acolher as famílias, animá-las. É muito exigente. Não é fácil integrar o que se vai sentido, no contacto com pessoas em grande vulnerabilidade e sofrimento.
No trabalho com as equipas no terreno, procura animá-las?
Essa é a minha preocupação principal: manter forte o espírito das equipas que estão no terreno e que trabalham na retaguarda, ajudando-as a compreender o significado do trabalho. É preciso que não fiquemos apenas agarrados às tarefas concretas, é importante manter a visão mais larga, ter presente o horizonte que nos move e como aquilo que fazemos agora terá consequências no futuro.
Há a ideia de que antes da guerra havia uma grande vida cultural, e depois houve uma grande destruição. Como era o seu dia-a-dia, antes e durante a guerra?
Antes da crise, Damasco, Alepo e Homs eram cidades que viviam de noite, com muita animação. Agora, é difícil encontrar pessoas na rua após as 20h00. Quando voltei a Damasco em 2012, depois de ter estado no Canadá a estudar, o primeiro grande choque foi reparar que uma das ruas principais de Damasco estava completamente vazia. Apenas algumas crianças a jogar futebol numa enorme avenida.
Como era antes?
Era uma avenida em que quase não se conseguia circular, com trânsito muito intenso.
Havia vida cultural, concertos…
Havia uma vida cultural que agora é difícil, mas o que mudou mesmo foi o modo como as pessoas se relacionam. Há 18 minorias religiosas e antes da crise vivia-se pacificamente, com grande espírito de vizinhança e proximidade. A crise quebrou não só laços de confiança entre as minorias, mas, dentro das próprias minorias, tornou as pessoas mais desconfiadas umas em relação às outras, há mais desconfiança entre os próprios cristãos, ou os alauitas.
A crise quebrou não só laços de confiança entre as minorias, mas, dentro das próprias minorias, tornou as pessoas mais desconfiadas umas em relação às outras, há mais desconfiança entre os próprios cristãos, os alauitas.
O que levou a isso?
Estamos cercados por muita violência e não é fácil confiar no outro.
A necessidade de sobrevivência sobrepõem-se à confiança?
De certa forma. era como se vivêssemos uma ilusão de que estávamos a viver juntos numa harmonia perfeita. Com a crise as pessoas descobriram que essa harmonia era uma ilusão. O que não é exatamente verdade, mas foi assim que as pessoas o experimentaram. E isso fez com que cada minoria se fechasse mais em si própria e criasse mecanismos de defesa, atacando os outros.
Na sua génese a sociedade síria é uma sociedade de mistura e de relações, de interconexões. Quando há uma festa em casa, tem que se convidar os vizinhos. Quando há uma festa muçulmana, os cristãos visitam-nos e quando há uma festa cristã os muçulmanos vêm saudar-nos.
E será possível recriar a “ilusão” dessa harmonia?
Na sua génese a sociedade síria é uma sociedade de mistura e de relações, de interconexões. Quando há uma festa em casa, tem que se convidar os vizinhos. Não é algo opcional, faz parte. Quando há uma festa muçulmana, os cristãos visitam-nos e quando há uma festa cristã os muçulmanos vêm saudar-nos.
Mas participam nas celebrações um dos outros?
Não, mas passamos por lá para desejar uma boa celebração.
Mas isso já está a ser recuperado de alguma forma?
Essa é uma das grandes preocupações do JRS. Na nossa própria equipa há mistura de proveniências religiosas. Servimos as pessoas sem nos preocuparmos quem são, sem lhes fazermos perguntas sobre a sua identidade, ou qual é a sua fé. Desde 2012 que faz parte do nosso projeto proporcionar encontros à volta da mesa com pessoas de diferentes credos e proveniências. Organizamos encontros com famílias muito diferentes, sete ou oito famílias, e elas têm que preparar uma refeição e comerem juntos. E dessa forma podemos restabelecer laços entre as pessoas.
Servimos as pessoas sem nos preocuparmos quem são, sem lhes fazermos perguntas sobre a sua identidade, ou qual é a sua fé. Desde 2012 que faz parte do nosso projeto proporcionar encontros à volta da mesa com pessoas de diferentes credos e proveniências.
E sentem que os laços já estão a ser recriados?
Sinceramente não sei. Não podemos obrigar as pessoas a refazer laços, queremos apenas mostrar que é possível. Porque essas são as raízes mais profundas da sociedade síria e têm que vir de novo ao de cima. O que acontecerá no futuro, se estas famílias se manterão ligadas… não está nas nossas mãos. Se começarmos por estes pequenos espaços, se houver frutos, então é possível alargá-los. As pessoas estão pelo menos a começar a questionar-se sobre essa necessidade.
Quais os principais projetos do JRS na Síria?
[O P. Gonçalo interrompe e esclarece] – Neste momento estamos numa fase de transição. A pergunta será mais o que temos estado a fazer, e o que faremos no futuro.
O P. Fouad continua: Sim, assim a questão fica melhor colocada. O JRS começou o seu trabalho na Síria com refugiados iraquianos e depois com a crise apostámos em projetos de emergência. Começámos em Damasco com a distribuição de cabazes alimentares a muitas famílias. Desenvolvemos esses projetos noutros locais. Em 2014 começámos a deixar alguns apoios de emergência e começámos um projeto em Sahur, na zona este de Alepo, a que chamamos centro comunitário. Este centro oferece educação para as crianças, apoio psicossocial, e fomenta também processos de reconciliação, envolvendo homens e mulheres.
Mais na linha de reconectar as pessoas?
Sim, é mesmo isso. Há muitas organizações a desenvolver projetos de ajuda mais direta. Num momento em que as coisas começam a parecer mais pacíficas, temos que olhar para o futuro. A única forma de ajudar as pessoas é dar-lhes ferramentas que permitam acreditar no futuro. Por isso nos concentramos na educação das crianças e em ajudar homens e mulheres a pensar nas suas vidas. A nossa linha neste momento é mudarmo-nos para centros comunitários que ajudem a refazer os laços.
A única forma de ajudar as pessoas é dar-lhes ferramentas que permitam acreditar no futuro.
Dizia que as coisas estão mais pacíficas? Como descreveria a situação hoje?
Até abril a situação era difícil com bombardeamentos em todo o lado, todos os dias. Com muita pouca segurança de ambos os lados do conflito, não nos podíamos movimentar e tivemos que encerrar os nossos projetos muitas vezes. Hoje podemos dizer que a situação em Alepo é segura. Não há bombardeamentos, nem combates. Em Damasco a situação também é segura. A estrada principal entre Damasco e Homs foi recentemente reaberta.
E as pessoas começam a sair mais à rua?
Sim, a vida social vai-se restabelecendo.
[ O P. Gonçalo acrescenta] – Alepo e Damasco eram cidades muito turísticas, bastante cosmopolitas. Com a crise e sem turistas esses lugares ficaram vazios, mas agora as pessoas começam a ir lá, a descobrir zonas da sua cidade que não conheciam. Mas não há turistas, até porque a sua entrada não é permitida.
Como se processa tudo isto interiormente? Como é que esta situação desafia a sua vida espiritual?
Desafia muito. A primeira questão que fazemos é: onde está Deus? É uma pergunta que surge de todos os lados e religiões. Se Deus está presente, como permite tudo isto? É preciso dar alguma resposta, tentar explicar que Deus está se procurarmos ajudar, se podermos fazer alguma coisa. Deus não pode controlar tudo, mas dá-nos força para fazermos alguma coisa. Outra questão é: se cai uma bomba, alguém morre e eu sobrevivo, o normal é pensar “Deus salvou-me”. E é preciso desafiar esse pensamento. O que queres dizer com isso? Significa isso que Deus gosta mais de ti do que da pessoa que morreu? Quando estamos em guerra, as pessoas pensam que é permitido “matar os inimigos”, se eles morrem é porque mereciam. E também temos que desafiar esse pensamento como cristãos, como é que como ser humano se pode dizer que a vida daquele inimigo não tinha valor? Só a tua vida tem valor? Nada disto são questões simples, são muito profundas.
E como responde a essas questões?
Recordando que toda a vida tem valor aos olhos de Deus, que não distingue pessoas. Mas na verdade, não há uma resposta. É pelo nosso serviço que podemos responder. Quando promovemos encontros entre famílias que estiveram em campos opostos, estas percebem que os outros podem ter sofrido mais do que eles e deixam de olhar para eles como inimigos, passam a olhá-los como pessoas.
A questão é como podemos manter esperança no futuro, esse é o nosso maior desejo. Em 2014, em Homs, um jesuíta morreu porque escolheu ficar até ao fim. Não para fazer nada, mas para manter aquele lugar aberto à esperança. Em Alepo mantivemos a nossa presença, mesmo sabendo que era perigoso, porque não podemos abandonar um sítio de um momento para o outro se queremos trazer esperança a esse lugar. Seguindo uma lógica normal, o que fazemos tem sentido? Não!
Quando promovemos encontros entre famílias que estiveram em campos opostos, percebem que os outros podem ter sofrido mais do que eles e deixam de olhar para eles como inimigos, passam a olhá-los como pessoas.
Há a convicção de que os refugiados que abandonaram o país são os mais ricos, educados e preparados. Como se reconstrói o país sem eles?
Não vai ser fácil. Agora é difícil encontrar pessoas que possam trabalhar ou pensar. Mas as que permaneceram acreditam no país e farão o seu melhor. Eu acredito nisso. Nem todos os que saíram eram ricos, muitos saíram porque corriam riscos. Tiveram que fugir. E se puderem, voltam. Alguns, já voltaram. Não podemos ter a expectativa de que o país seja reconstruído de modo fácil. Muitas coisas não serão reconstruídas por mãos sírias, já há contratos feitos. Mas os sírios tem um papel a desenvolver. Não se trata apenas de uma reconstrução material, mas da reconstrução social. E os que ficaram serão capazes de ultrapassar esta situação. Agora estamos a focar-nos no futuro. Não podemos ter a certeza de que seremos capazes de evitar outra crise, mas temos de apontar para o futuro. O que estamos a fazer com as crianças que viveram sempre em guerra, é tentar cultivar e incutir-lhes boas memórias. E no futuro talvez, e digo mesmo talvez, elas recordarão essas boas memórias.
O que estamos a fazer com as crianças que viveram sempre em guerra, é tentar cultivar e incutir-lhes boas memórias. E no futuro talvez, e digo mesmo talvez, elas recordarão essas boas memórias.
Como sírio, como lhe parece que este conflito pode ser resolvido? Pode ter um fim natural?
Nada se resolverá sem justiça, verdade e educação. Sem isto, não seremos capazes de ultrapassar as dificuldades. A Síria tem um longo historial de crises, que não são de agora, começaram há centenas, milhares de anos, ainda antes de Cristo (risos). Foi sempre um país com uma mistura de religiões e minorias, cada uma com as suas reivindicações. Mas se quisermos uma verdadeira paz precisamos de justiça, verdade e educação.
Nada se resolverá sem justiça, verdade e educação.
E agora ouvimos o P. Gonçalo Castro Fonseca, sj
O que o moveu a oferecer-se para ir para a Síria? Não foi um pedido normal do Provincial mas uma resposta a um apelo do P. Geral dirigido a todos os jesuítas…
Houve uma preparação interior a partir dos Exercícios Espirituais de Mês da Terceira Provação (última etapa de formação de um jesuíta) e da experiência apostólica que fiz em Atacam, no deserto do Chile, onde se vivia uma extrema pobreza. Estas duas experiências colocaram no meu coração – e coloco entre aspas pois não quero parecer arrogante – o desejo de ser apóstolo da esperança. Depois a vida seguiu normalmente, vim para o CUPAV (centro universitário dos jesuítas em Lisboa), onde também havia pessoas necessitadas de esperança.
O dia em que recebi a carta do Geral a conceder-me os últimos votos coincidiu com o dia em que conheci sírios, na Polónia. Pensei: “ah, este é o lugar onde sou chamado a levar esperança”. Foi um processo interior despoletado pela carta do P. Geral a pedir jesuítas para aquela parte do mundo e também pela homilia do Provincial nos últimos votos de dois companheiros, em que disse “vocês são carne para canhão”. Naquele momento, percebi que tinha de levar aquilo a sério. E depois foi um processo de indiferença, de me oferecer para o que fosse preciso. O meu coração pedia Síria, mas eu não fui dizer: quero ir para a Síria. A honestidade do discernimento é chegar e dizer: “estou indiferente, vou para onde for preciso”.
O dia em que recebi a carta do Geral a conceder-me os últimos votos coincidiu com o dia em que conheci sírios, na Polónia. Pensei: “ah, este é o lugar onde sou chamado a levar esperança”.
Já com o Provincial do Médio Oriente colocou-se a hipótese do Iraque ou Marrocos. Ele nunca me propôs Síria, porque não teria coragem para isso. E eu perguntei: “Porque não a Síria? Sinto que sou chamado a ir para lá”. Ótimo, disse-me ele, acrescentando: “Nunca enviaria ninguém para a Síria que não quisesse”. Nem aos próprios sírios isso é pedido, por toda a insegurança. Nunca o assumi publicamente, porque o processo podia não se realizar, mas desde o início que soube que ia para lá.
Como foi chegar a um país em guerra, com todas as conceções que se traz na cabeça?
Muita surpresa. Pensava encontrar um país em estado de sítio, sem ninguém nas ruas, e de repente percebi que até podia sair e dar uma volta sozinho. Depois da surpresa, percebi as diferenças: não há correio, a luz falta frequentemente, há checkpoints em todo o lado, e sair de casa sem documentação é a pior coisa que pode acontecer. Aí não perguntam, vai-se logo preso. Veio o desconforto de não estar seguro, e depois a verdadeira dimensão do risco. Nunca tive uma arma apontada à cabeça, mas corri os riscos de qualquer sírio: levar com uma bomba, ao andar na rua, que me matasse ou me pusesse inútil. Primeiro a surpresa, depois a noção de uma realidade que é assustadora para a nossa cultura. A primeira vez que fui a Homs, 30 minutos depois de chegar, aparece-nos em casa um militar a perguntar quem eu era, a pedir documentação, porque não me conhecia. O sentimento de estarmos a ser observados. Há uma tensão no ar.
No dia a seguir não fui capaz de sair de casa, e dois dias depois, pensei: “tenho de sair, senão fico bloqueado”.
Alguma bomba explodiu perto de si?
Várias bombas caíram minutos antes ou depois de eu passar. Por ingenuidade, achava que nunca me iria acontecer. Um dia, era inverno, estava escuro, e deixei os transportes públicos e fiz o caminho a pé para casa, o que fazemos sempre. Cem metros à frente, caiu uma bomba e eu bloqueei, fiquei sem reação, porque descobri uma coisa nova, o medo. Na cabeça revia os procedimentos e pensava que tinha de me deitar no chão e ir embora, mas fiquei parado. Senti os estilhaços. Pensei “isto é real, acontece mesmo”, nem sequer consegui ter emoção. No dia a seguir não fui capaz de sair de casa, e dois dias depois, pensei: “tenho de sair, senão fico bloqueado”.
Todos os estrangeiros e organizações saem quando há conflitos e fica apenas a Igreja. Como é que as pessoas olham para os sacerdotes, e principalmente para si, que estava cá, no conforto do lar, e foi para lá quando todos os outros saíam?
As crianças não percebem esses conceitos mas os jovens e adultos sim. A maioria sairia dali se possível, e por isso, a chegada de um estrangeiro dá-lhes a força de voltar a acreditar. O mais importante para eles não foi eu ter ido mas, no meio da pior crise da guerra em Damasco, ter ficado. Para eles seria natural que eu me tivesse ido embora, não teriam ficado desiludidos. E eu fui questionado se queria sair, mas eu não queria. Para eles a força está em que eu fiquei, como eles, porque podia ter ido embora. Mesmo os jesuítas não tinham um sacerdote estrangeiro na Síria desde 2012.
Para eles a força está em que eu fiquei, como eles, porque podia ter ido embora.
Quais são as suas rotinas?
Estamos a mudar de funções e projetos na Síria, mas até agora era coordenador do centro de atividades, e comecei a trabalhar com a JRS num processo de mudança, porque fechámos casas e estamos a modificar os projetos. No primeiro tempo organizei a casa, o que me permitiu grande proximidade aos animadores. Mas agora serei assistente do diretor geral do JRS para a Síria. Não era bem o que esperava, pois queria estar no terreno, mas essa experiência vai-me ajudar a ajudá-lo. Quem trabalha no escritório não tem noção do trabalho no terreno, e agora terão, porque como também trabalhei diretamente com crianças, haverá no escritório alguém que conhece as histórias do terreno.
Crê que o seu trabalho transmite esperança às pessoas?
Sem dúvida. O trabalho de estar no terreno permitiu-me dar esse alento às pessoas,
Que mitos temos de deixar cair para termos uma imagem mais real do que está a acontecer na Síria?
Esses mitos não são culpa das pessoas. Mas eu diria: não confiar nos meios de comunicação social que são muito influenciados pelos meios americanos. Questionar-se se a informação que está a chegar é realmente fiável. Precisamos de tentar conhecer melhor a realidade e os refugiados que temos podem ser a solução para muitas situações. Precisamos de ouvir as suas opiniões. Não podemos deixar-nos atar pela ideia de que tudo se reduz aos bons e maus, a realidade é mais complexa. Temos que deixar de pensar nos sírios como “coitadinhos”, porque isso nos torna tão importantes. É necessária uma enorme dose de humildade, porque o que vemos na televisão podia acontecer connosco.
Temos que deixar de pensar nos sírios como “coitadinhos”, porque isso nos torna tão importantes. É necessária uma enorme dose de humildade, porque o que vemos na televisão podia acontecer connosco.
“Ter pena” é algo espontâneo. Como mudar isso?
Não sei muito bem como isso se faz na prática. Mas há uma atitude de fundo a mudar. Se pensarmos no modo como Deus lida connosco. Não basta ser solidário, é bom mas não chega. É preciso que nos identifiquemos com aquelas pessoas. A ideia de “coitadinhos” coloca-nos numa atitude de solidariedade, e até posso ajudar e ser generoso, mas nunca chegarei a colocar-me no seu lugar. Jesus não foi solidário connosco… Cristo identificou-se com a nossa realidade. Esta identificação será o princípio da mudança…
Como é que alguém em Lisboa a ver TV se pode identificar com alguém a fugir de uma bomba na Síria?
Tentemos pensar: “e se fosse contigo?”. Mesmo quando lá cheguei e sabia que as bombas caiam, não achava que pudesse acontecer comigo. Quando aconteceu, mesmo sem me atingir, no dia seguinte fui incapaz de sair de casa. E mesmo procurando esta identificação, sei que ela não é total. Estou muito longe de compreender realmente aquilo porque passam, pois ninguém da minha família morreu, nenhum dos meus amigos saiu e, se houver um problema, eu posso vir-me embora. Nesse sentido estou numa posição confortável. Se é difícil para mim, esta identificação é ainda mais difícil para quem vê tudo pela televisão. Ainda assim, sobretudo para os cristãos, a solidariedade sendo boa não é suficiente.
Não basta ser solidário, é bom mas não chega. É preciso que nos identifiquemos com aquelas pessoas. A ideia de “coitadinhos” coloca-nos numa atitude de solidariedade, e até posso ajudar e ser generoso, mas nunca chegarei a colocar-me no seu lugar.
Como é a relação das pessoas com a fé, como lidam com a questão: onde está Deus no meio de tudo isto?
É curioso que, havendo uma grande variedade de religiões e ritos, não há ninguém indiferente. Não há propriamente ateus, Deus é uma presença muito real nas suas vidas, o que é diferente do que estamos habituados. Pode-se perguntar livremente a religião ou rito, não é “politicamente incorreto”. Há uma certa dimensão de religiosidade popular, com sinais de devoção popular, como benzer-se ao passar por uma Igreja, e marcas da religião a que se pertence, como o terço ou o correspondente no Islão, o masbaha. Os mais jovens têm uma experiência espiritual muito forte mas não têm ferramentas para integrar, processar e a partilhar em comunidade. Participam nas celebrações, mas depois há alguma coisa nas suas vidas para as quais não chegam a ter ferramentas de interpretação. Têm uma forte experiência de fé, mas ainda não têm consciência da força dessa fé e de como expressá-la. Vão encontrando respostas para experiências como a guerra, mas não sabem lê-las ou expressá-las. A nossa presença ajuda a enquadrar e a dar palavras a estas experiências. Tivemos um tempo de retiro com o nosso staff do JRS, com pessoas de várias religiões, e foi realmente forte para eles, porque nós lhes demos as palavras de que necessitavam para se expressar.
A nossa presença ajuda a enquadrar e a dar palavras a estas experiências. Tivemos um tempo de retiro com o nosso staff do JRS, com pessoas de várias religiões, e foi realmente forte para eles, porque nós lhes demos as palavras de que necessitavam para se expressar.
Disse que tinha bastante contacto com jovens em que se dão esses contactos. Sai com eles?
No começo eu era o “estrangeiro”, a figura exótica com quem faziam questão de estar e que gostavam de conhecer. Mas esses encontros dão-se muito em casa das pessoas, porque é parte da cultura e porque também não têm dinheiro para ir a bares. Conheço as suas casas, têm uma vida social ocupada e agora já posso ser eu a provocar alguns encontros. Normalmente em casas, mas uma ou outras vez em bares, mais com amigos e para encontros mais pessoais do que com grupos.
Como estrangeiro como sente que esta crise pode ser ultrapassada?
As pessoas têm força e, se não houvesse interferência internacional, se dissessem ao povo “agarrem na vossa vida, resolvam os vossos problemas”, eles saberiam como fazê-lo. Não de um modo imediato, aceitando ajuda. Mas não do modo como estão a ser ajudados agora. Porque há demasiadas presenças internacionais puxando cada uma para seu lado e não dando autonomia. Há como que uma guerra mundial a acontecer na Síria, não é uma guerra síria. Se aqueles países lá não estivessem, a guerra já teria terminado há muito tempo. Se não houvesse tantos interesses políticos, a guerra já teria acabado.
[P. Fouad completa] Esta já não é mais uma crise Síria, é uma crise internacional que está a ser paga à custa de vidas sírias. Se esses poderes nos deixarem em paz, acredito que como Sírios poderemos resolver os nossos problemas.
Esta já não é mais uma crise síria, é uma crise internacional que está a ser paga à custa de vidas sírias.
Ser Jesuíta num contexto diferente
Já no final da entrevista quisemos saber como é que esta experiência tinha mudado a sua vivência como jesuítas e a sua ligação à Companhia de Jesus.
Como é viver a experiência de comunidade?
P. Gonçalo – Ainda que sejamos três, a experiência de partilha é mais a dois, entre mim e Fouad, pelo trabalho que nos une. Há a possibilidade de contacto pessoal – não tanto uma experiência de comunidade tão institucional como aqui em Portugal – e muita partilha e conversação espiritual.
Quando nos reunimos todos, das várias casas para momentos comuns, são momentos muito tensos, mas também intensos e de grande verdade.
P. Fouad – A guerra também afetou a nossa estrutura comunidade que se tornou mais dispersa. O nosso superior de comunidade vive no Líbano. Mas quando nos reunimos todos, das várias casas para momentos comuns, são momentos muito tensos, mas também intensos e de grande verdade.
Como é que esta experiência afetou o vosso sentido de pertença à Companhia de Jesus?
P. Gonçalo – Só por causa da experiência de discernimento, já teria valido a pena. Mas agora, sem deixar de me sentir português e ligado à nossa província, há uma coisa muito maior, há um sentido de pertença existencial ao corpo universal da Companhia, que se sente quase fisicamente. Ajuda-me manter-me ligado à província e à atualidade portuguesa, mas há um sentido de pertença ao corpo e a uma missão universal muito forte.
Há um sentido de pertença existencial ao corpo universal da Companhia, que se sente quase fisicamente..
P: Foaud – O apoio da Companhia Universal à Síria fez-me sentir uma maior pertença à Companhia Universal, sentir-me suportado e apoiado. Com a chegada de jesuítas de outros países percebi que era mais do que solidariedade, era estarem connosco. E disse para mim mesmo: “quero pertencer a este estilo de Companhia”. Não significa que tenha sido fácil, pois ao entrar na Companhia nunca me passou pela cabeça que estaria a trabalhar envolvido numa crise como esta. Mas percebi que tinha que estar disponível para qualquer situação em que fosse necessário dar Glória a Deus. Era isto que era necessário na Síria neste momento, foi isto a que fui chamado. E isso reflete a nossa espiritualidade de servir os mais necessitados, de estar com os outros, de encarnar em realidades concretas. E tudo isto ganhou um novo sentido na minha vida espiritual e na minha pertença à Companhia.
Nota: Esta entrevista foi conduzida em simultâneo para a Família Cristã e para o portal Ponto SJ, mas a edição da entrevista foi feita autonomamente.
Fotografia de capa e dos entrevistados – Ricardo Perna
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.