A meio do mês de outubro, depois de mais de dois anos e meio de guerra, o presidente da Ucrânia fez mais um tour pela Europa – a que acrescenta Biden, na Alemanha. Depois de mais de dois anos e meio de guerra, há coisas que se mantêm e coisas que mudaram. A lição de coragem dos ucranianos e a importância que dão a poderem escolher o seu destino, que querem que seja no Ocidente democrático e liberal, permanece. E deve ensinar-nos algumas coisas. A erosão do entusiasmo no apoio aos ucranianos, e mesmo o cansaço na Ucrânia, são o resultado da enorme diferença entre o que verdadeiramente está em causa: dois modelos políticos.
As democracias cansam-se da guerra. Nos regimes autoritários também há quem se canse, mas sem consequências, na maior parte dos casos. Nas democracias, a disponibilidade para combater depende de uma consciência comum da ameaça; nos regimes autoritários, depende do projeto de poder do líder, a que uma população entusiasmada pode aderir ou não. Estas diferenças podem parecer óbvias ou irrelevantes, mas não são. Recordam-nos como é muito melhor viver do lado de cá, como há quem esteja disposto a morrer para poder viver em democracia e liberdade, e como as democracias são mais vulneráveis aos ataques externos e internos.
Volodomyr Zelensky está a promover o seu plano de vitória que se pode resumir numa ideia simples e óbvia. A única hipótese para a paz é garantir a segurança da Ucrânia. E a única garantia de segurança da Ucrânia é a mesma e única que funcionou com os vizinhos da Rússia, agora e antes: a NATO. Que não foi a causa da guerra, mas terá de ser parte da paz.
Quando Putin envenenou um candidato a presidente da Ucrânia, quando manipulou eleições, quando forçou um presidente a afastar-se da União Europeia, quando ocupou a Crimeia e depois o Donbass, nunca foi porque a Ucrânia estivesse prestes a entrar na NATO nem que isso fosse uma ameaça iminente para a Rússia que exigia uma intervenção militar para impedi-la, foi porque a Ucrânia se estava a aproximar do Ocidente e das democracias liberais. E, assim como os Estados Unidos eram o grande íman democrático no século XX, hoje a Europa é o farol das democracias liberais no continente. E é isso que Putin verdadeiramente teme: mais um país que a Rússia acha que lhe pertence, ou pelo menos pertence à que considera ser a sua legítima esfera de influência, a afastar-se, a democratizar-se e a libertar-se. Putin não teme as armas da NATO, que nunca atacaram a Rússia ou um aliado russo, Putin teme a democracia, a economia de mercado e o contágio que podem gerar. É esse medo que explica a invasão. E é esse medo que nos devia fazer estar todos os dias conscientes do que é vivermos onde vivemos.
Quem aterrasse hoje no Planeta Terra e se fixasse no Ocidente euro-atlântico correria o risco de acreditar que este era o pior lugar do mundo. Culpados das alterações climáticas, estruturalmente racistas, invadidos de imigrantes, cada vez menos ricos e com ricos cada vez mais ricos, cheios de bolsas de pobreza, a perder a sua cultura e fé. E por aí fora. A auto-crítica ocidental é imensa. Muito maior que na Guerra Fria. E injustificada. Apesar das queixas, críticas e ambições legítimas, é evidente que vivemos no melhor lugar do mundo, no melhor tempo e muito melhor do que achamos. Se dúvidas tivéssemos, o objetivo da Ucrânia, ou de quem morre no meio do mar a tentar chegar à Europa, são uma recordatória brutal. Tudo o que a Ucrânia quer é poder ser com nós. Tudo o que a maioria dos imigrantes que aqui chegam querem é poder viver com a nossa prosperidade. Uns e outros estão a dispostos a correr o risco de morrer por isso. Se isso não nos diz nada sobre o valor do que temos, nada dirá.
Se dúvidas tivéssemos, o objetivo da Ucrânia, ou de quem morre no meio do mar a tentar chegar à Europa, são uma recordatória brutal. Tudo o que a Ucrânia quer é poder ser com nós. Tudo o que a maioria dos imigrantes que aqui chegam querem é poder viver com a nossa prosperidade. Uns e outros estão a dispostos a correr o risco de morrer por isso. Se isso não nos diz nada sobre o valor do que temos, nada dirá.
O discurso contra a imigração tenta inventar uma realidade onde quem chega desfaz as nossas comunidades, a nossa cultura, a nossa ordem. Claro que quem chega de longe e de lugares e culturas diferentes traz a diferença consigo. Mas quem aqui chega o que quer, na enorme maioria dos casos, é poder viver com a prosperidade e liberdade que só aqui encontram. Muito do nosso anti-ocidentalismo e anti-europeísmo só os pode surpreender.
A grandeza da América contemporânea foi, além da sua circunstância histórica, a sua ideia fundamental: o sonho americano. Foi esse o íman que fez com que tantos de tantas nacionalidades ali fossem buscar paz, oportunidades, prosperidade. No tempo em que a América acreditava em si, atraía quem estava fora, unia quem estava dentro e inspirava quem estava distante. Essa América está em retração. Mas pode ser uma lição. Se a Europa quer de facto recuperar o seu lugar no mundo precisa, primeiro que tudo, de perceber o valor que é atrair imigrantes e inspirar democratas. E não se deixar convencer pelos extremistas anti-sistema, de um e outro lado, que este é o pior lugar do mundo. Era bom que fosse.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.