Uma suave descida aos infernos

«A Promessa» de Damon Galgut é um livro de uma lucidez e mestria maiores, que nos dá numa ordinária família de sul-africanos brancos a “ordinária verdade” da nossa natureza caída e da banal mas procedente qualidade dos nossos pecados.

No mundo no qual a Bíblia nasceu, o chamado “Antigo Oriente Próximo” (a região a que hoje chamamos “Médio Oriente”), eram comuns, como em tantas outras latitudes, os tratados de cariz político entre reis e respetivos povos. Entre as singularidades desta prática naquelas eras e contexto específicos, conta-se o facto de os “tratados” serem designados, também na Bíblia, com um termo que significa, basicamente, “maldição”. Tal escolha terminológica – que talvez nos pareça incompreensível ou até macabra – dependia muito provavelmente da tradição de incluir, no final do texto do tratado, uma lista de maldições (nalguns casos, bastante extensa!) contra possíveis violadores (o melhor exemplo bíblico é Deuteronómio 28). No entanto, ainda aceitando esta explicação, não deixa de ser significativo que, para estes povos naquela época, a noção de tratado ou de aliança (!) apareça tão intimamente ligada à noção de maldição; ou, por outras palavras, que as promessas de fidelidade e constância que um rei ou povo possam formular em boa-fé, no contexto de um acordo entre parceiros, tragam em si, como que por definição, o risco ou a semente de uma catástrofe, de um desastre.

Esta curiosidade histórica, em si pouco relevante, não deixou de me voltar uma e outra vez à mente enquanto lia o mais recente romance do sul-africano Damon Galgut. A Promessa, que acabou de ser publicado em Portugal pela Relógio D’Água, ganhou o prestigioso Booker Prize e é seguramente um dos livros de 2021. Como o seu conterrâneo J. M. Coetzee, Galgut é um “incansável estudioso”, nos seus romances, do destino e peripécias da África do Sul nos anos do apartheid e nas décadas de reconstrução social e política que se lhe seguiram. Um, como o outro, olham sem piedade para os erros do passado (e do presente!) e trazem o leitor a esse vórtex de discriminação, injustiça e violência que marcou e, em muitos sentidos, continua a marcar a existência daquela nação africana.

Em A Promessa, Galgut conta-nos a história da família Swart que, como ele mesmo nos diz, é “simplesmente um grupo ordinário de sul-africanos brancos”. Tudo começa em 1986, durante o funeral da matriarca da família. Aí somos confrontados, pela primeira vez, com a promessa, feita pelo marido à esposa em agonia, de passar para o nome de uma criada negra, Salomé, um terreno e o pequeno anexo onde ela vive há anos com um filho. Amor, uma das filhas do casal, ouve o que foi dito e tenta convencer o pai e, depois, os irmãos a cumprir o prometido.

A Promessa é um excelente retrato da quase impercetível espiral das nossas venialidades; é, por isso, também um alerta poderoso contra uma certa complacência espiritual que se infiltra nas nossas vidas à maneira do bolor nas paredes.

Desta premissa inicial, o romance avança para mais três funerais, separados por cerca de dez anos, conduzindo o leitor do final do apartheid até à presidência de Jacob Zuma, na segunda década do século XXI, passando pela famosíssima final do campeonato do mundo de râguebi em 1995 e a tomada de posse do presidente Thabo Mbeki. Os três funerais – dos personagens que dão os nomes aos capítulos do livro – são janelas para as vidas dos membros da família e as frustrações e o ressentimento que se acumularam e envenenaram as relações, criando um rastro de incompreensão e ainda mais feridas. História familiar, o livro é também fábula para o país que lhe serve de cenário, onde as horas mais gloriosas da nação africana de Mandela e De Klerk foram dando lugar ao vagaroso, e tantas vezes frustrante (e frustrado!), processo de reconciliação social e reedificação do corpo político.

Há pouco de redenção em A Promessa: o silêncio paciente de Salomé, a criada, ou a humilde persistência de Amor, a filha mais nova, são apenas sinais discretos e o feliz desenlace final é mais epílogo que resposta. Mas, o romance é um exigente exercício de lucidez e merece, por isso, ser lido e ponderado. O “olhar clínico”, às vezes com uma ponta de cinismo, de Damon Galgut coloca diante de nós a verdade do pecado (o autor não usa e talvez não se reveja neste termo) na banalidade da sua presença nas nossas vidas. Nenhum dos personagens é ou age movido pela vontade de magoar ou “matar” os outros, mas a mesquinhez e a indiferença (com todos os seus tintes racistas, no caso dos Swart) são “matéria suficiente” para que o mal vá ceifando as vidas e as relações, semeando divisão e rancor, distância e silêncio. Nesse sentido, a repetida incapacidade ou recusa em cumprir a promessa tornam-se parábola desta “suave descida aos infernos”, que se alimenta dos vazios da vontade, da hipocrisia, do egoísmo que é ou se torna o amargo pão de cada dia.

A Promessa é um excelente retrato da quase impercetível espiral das nossas venialidades; é, por isso, também um alerta poderoso contra uma certa complacência espiritual que se infiltra nas nossas vidas à maneira do bolor nas paredes. No limite, contudo, a trágica saga dos Swart revela a urgência da graça, humana e divina, num mundo ferido pelo pecado; diz-nos também a presença e a força dessa graça nas nossas vidas, onde e quando experimentamos que, quase apesar de nós, somos mais que a desgraçada soma do que não pudemos, não quisemos e não cumprimos.

 

A Promessa (original: The Promise)
Damon Galgut
Tradução de José Mário Silva
Relógio D’Água
2021
288 páginas

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.