Uma reflexão sobre políticas públicas

É por isso que por serem políticas públicas devem ser políticas que tenham as pessoas no centro, que respondam às suas necessidades, mas que, acima de tudo, salvaguardem os seus direitos.

Vivemos tempos confusos, com muita informação a circular e, não raras vezes, pouca capacidade da nossa parte para a filtrar e perceber o que efetivamente quer dizer. Para além disso, nem sempre é óbvio o impacto que tem ou pode vir a ter na nossa vida. Entre outros domínios, isto acontece também ao nível dos discursos e debates políticos.

No final do mês de julho aconteceu no Parlamento o Debate do estado da Nação. Ao ouvir intervenientes diferentes, fiquei a pensar no quanto seria importante tornar mais claras tantas das informações e dos números que foram apresentados. Pensei, ao ouvir aquele debate, na história usualmente denominada de “Os sete sábios cegos e o elefante”. Esta história circula com diferentes detalhes e nomes na Internet e não sei, em rigor, a sua origem. Ajuda-me aqui a ilustrar a ideia de que é possível que várias pessoas falem de uma mesma realidade a partir de diferentes perspetivas e que disso resultem imagens e informações potencialmente diversas em relação a essa mesma realidade. E às vezes até potencial ou aparentemente contraditórias…

No Parlamento discutem-se políticas, nomeadamente políticas públicas, com impacto na vida de todos os cidadãos e cidadãs. Todas as políticas são parte de uma dinâmica complexa de fenómenos que se interrelacionam, sendo por isso difícil separar a discussão de determinadas medidas de um contexto mais amplo e das suas eventuais consequências. Contudo, diria que esse é o maior desafio de quem faz políticas: ser capaz de olhar para o todo e não apenas para medidas pontuais e imediatas, percebendo o impacto que poderão acabar por ter a curto, médio ou longo prazo. A Sociologia, a Economia, a História e outras ciências ajudam sobremaneira a antecipar essas consequências e por isso devem ser recursos relevantes para quem desenha políticas, seja a nível local, nacional ou internacional.

Contudo, diria que esse é o maior desafio de quem faz políticas: ser capaz de olhar para o todo e não apenas para medidas pontuais e imediatas, percebendo o impacto que poderão acabar por ter a curto, médio ou longo prazo. A Sociologia, a Economia, a História e outras ciências ajudam sobremaneira a antecipar essas consequências e por isso devem ser recursos relevantes para quem desenha políticas, seja a nível local, nacional ou internacional.

Isto é especialmente visível quando o que está em causa são as chamadas “políticas sociais”. Coloco o termo entre aspas porque como procurarei ilustrar abaixo, todas as políticas acabam por ser “sociais” ou de, no mínimo, ter um grande impacto nestas.

Para tornar mais claro o que quero dizer, partilho com quem lê uma história, baseada no percurso de vida de uma pessoa concreta que conheci. Vou contar-vos, resumidamente, a história da D. Lurdes (nome fictício), uma mulher com 84 anos.

Trabalhou nos correios a sua vida toda e considera que tem uma reforma “confortável”. Vive há cinco anos numa Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) da cidade do Porto. Tem uma filha que vive em Lisboa e um filho que por razões profissionais viaja muito, por isso não passa muito tempo no Porto. Quando o marido faleceu, a D. Lurdes ficou muito triste e não queria ficar sozinha na sua casa, na qual tinha muitas memórias do marido e por isso conversou com os filhos dizendo-lhes que não conseguia continuar a viver naquela casa, mas que não se queria “desfazer dela” porque é a casa da família e é dos filhos. Como era autónoma e independente e estava muito integrada na sua comunidade, com uma rede de apoio muito sólida e confortável, tentaram encontrar uma casa mais pequena na zona onde vivia, mas os preços das casas para alugar tornaram esta opção inviável. Após algum tempo, decidiram conjuntamente que o melhor seria ir para uma ERPI, também com o argumento de que neste contexto teria companhia, não ficando tanto tempo sozinha. A D. Lurdes foi conhecer várias instituições e acabou por escolher uma que lhe pareceu agradável e que ficava relativamente perto da sua casa. À entrada para a ERPI considerava-se uma pessoa saudável e autónoma.

O tempo foi passando e a D. Lurdes tem vindo a sentir-se cada vez mais triste e desiludida com a sua decisão… Sente que a sua saúde se tem vindo a deteriorar de forma muito significativa e muito rapidamente. Também se sente profundamente sozinha no meio de tanta gente com a qual não se identifica… Nunca teve, desde a morte do marido, nenhum acompanhamento específico para a ajudar a lidar com o seu luto e com a perda do seu companheiro de há mais de 60 anos, nem fora nem dentro da instituição. Não voltou mais à sua antiga casa e também não tem contacto com as pessoas com quem conviveu ao longo de toda a sua vida, como os seus vizinhos e outros familiares da sua família alargada. Tem a visita dos filhos e dos netos sempre que podem e vai para as suas casas nas épocas festivas.

Sente que não faz parte deste espaço (ERPI) e que as pessoas com quem partilha os espaços comuns da casa estão muito fragilizadas… Opta por praticamente não conversar com ninguém e vai fazendo as suas palavras cruzadas e sopas de letras. Também não sai muito da instituição porque depois da operação que fez a um joelho tem dificuldade em sair sozinha. Há transportes públicos a 500 m da instituição, mas os passeios até lá estão muito danificados e tem receio de cair. Custa-lhe pedir aos amigos e aos filhos para saírem com ela, por isso as saídas acabam por acontecer praticamente só quando tem que ir a consultas médicas… Na ERPI todas as necessidades básicas lhe são asseguradas, mas incomoda a D. Lurdes ver que as trabalhadoras têm “demasiado trabalho e que estão sobrecarregadas”, ficando muitas vezes com pouca disponibilidade e paciência para quem ali vive… E por isso compreende que não tenham tempo para conversar e, menos ainda, para a acompanhar em passeios fora da instituição. A D. Lurdes disse-me uma tarde que se sente a morrer aos bocadinhos.

Existe já e parece que vai haver ainda uma maior aposta, graças ao famoso PRR, em respostas como ERPIs, Cuidados Continuados, Cuidados Paliativos e similares, sendo frequentes os anúncios de mais uma série de “camas” a médio prazo. Concordo que são uma mais-valia e que são muito necessárias. Mas espero que venham acompanhadas por mais do que “camas” – expressão que me arrepia sempre que a ouço – até porque não faz sentido olhar para estas medidas como se acontecessem à margem da vida da sociedade em geral. Neste sentido, a minha inquietação é se as respostas que decorrem dessas políticas cumprem aquilo que se esperaria delas. Sinto por vezes que se garantem sobretudo respostas funcionais e técnicas e não tanto respostas humanizadas, que respeitem as pessoas naquelas que são as suas idiossincrasias e necessidades, que respeitem as suas vontades e desejos e os seus percursos de vida.

Sinto por vezes que se garantem sobretudo respostas funcionais e técnicas e não tanto respostas humanizadas, que respeitem as pessoas naquelas que são as suas idiossincrasias e necessidades, que respeitem as suas vontades e desejos e os seus percursos de vida.

E por isso, para falar sobre este assunto, temos de falar sobre políticas relacionadas com as pensões. O que poderia ser considerada uma pensão confortável há uns anos, pode hoje ser insuficiente para fazer face a todas as despesas que as pessoas enfrentam. E, relembremos, uma parte muito significativa das pensões que as pessoas recebem em Portugal estão muito longe de se poderem apelidar de confortáveis, o que torna toda esta reflexão ainda mais urgente.

E neste sentido, temos de falar sobre políticas de emprego: porque se ao longo da vida vamos tendo carreiras contributivas frágeis, quando formos velhos vamos ter baixas pensões e perpetuar a nossa situação de pobreza; porque muitas vezes as pessoas simplesmente não podem faltar ao trabalho, não raras vezes precário, para dar apoio a familiares, sobrecarregados que muitas vezes estão já com os seus trabalhos e o apoio a filhos e às vezes até a netos. Por outro lado, precisamos também de pensar nas condições de trabalho das pessoas que prestam serviços nestas instituições, no reconhecimento e valorização do seu trabalho, que tão frequentemente não acontece, sentindo-se não raras vezes trabalhadoras cansadas, desgastadas, sem tempo para desempenhar todas as suas tarefas, e emocionalmente esgotadas, por tudo o que este trabalho envolve. Existem também homens a desempenhar estas tarefas e funções. Contudo, uso intencionalmente o feminino porque a esmagadora maioria são mulheres e o género não é, como já se sabe, um detalhe no se refere ao trabalho, sua remuneração e reconhecimento).

Existem também homens a desempenhar estas tarefas e funções. Contudo, uso intencionalmente o feminino porque a esmagadora maioria são mulheres e o género não é, como já se sabe, um detalhe no se refere ao trabalho, sua remuneração e reconhecimento).

Temos de falar de políticas de saúde, tantas vezes olhadas a partir de uma racionalidade numérica onde parece ser difícil encaixar a questão da saúde mental, por exemplo.

E se calhar também temos de falar de políticas de habitação, porque temos um problema sério no acesso à habitação, até para pessoas com rendimentos medianos em Portugal, o que faz com que muitas pessoas não tenham a possibilidade de ter uma casa ajustada às diferentes necessidades que vão surgindo ao longo da vida, como no exemplo que vimos.

Poderia continuar a dar exemplos concretos do quanto estes são temas complexos e que se interligam e do quanto uma parte do puzzle que é a vida das pessoas pode ter um impacto determinante em todas as outras. É por isso que a política não é, não pode ser, o que se vê a curto prazo. Fazer política implica olhar para os impactos que cada medida poderá ter no futuro. É por isso que por serem políticas públicas devem ser políticas que tenham as pessoas no centro, que respondam às suas necessidades, mas que, acima de tudo, salvaguardem os seus direitos. Até porque salvaguardar os direitos de uns, que podem parecer os mais frágeis em dado momento, é garantir os direitos de todos/as, independentemente dos lugares de poder que possam ir tendo ao longo da vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.