Ninguém quer pensar na morte. Pensar na sua própria partida é admitir que “acabamos” — pelo menos nesta vida —, uma ideia demasiado chocante para os nossos egos inflacionados e agarrados ao material. Isto é ainda mais verdade para as pessoas jovens, aparentemente saudáveis, inseridas numa sociedade que hipervaloriza a juventude.
A verdade é que, tudo correndo normalmente, um dia vamos todos morrer. Da mesma forma que defendo que devemos pensar como é que queremos que a próxima geração nasça e como queremos parir, devíamos todos, mais cedo do que gostávamos, pensar em como queremos deixar a vida terrena, e falar sobre isso com quem nos é próximo.
O conceito de uma boa morte começa a estar mais na berra. Estou a falar da morte natural (por doença e/ou idade), que idealmente nos espera a todos. Tem havido algum ativismo para desmistificar o processo da morte, os cuidados paliativos e, do outro lado, a atividade das empresas lutuosas. Como de costume esta conversa tarda a chegar, mas já nos bate à porta. Numa cultura que recusa o envelhecimento, a fragilidade, a finalidade da vida, e que faz tudo por higienizar todos os momentos, retirando os idosos da sua casa, enfiando os “velhos” num lar e se possível passando diretamente para a morgue, perdemos totalmente o contacto com uma importante e incontornável parte da vida.
Numa cultura que recusa o envelhecimento, a fragilidade, a finalidade da vida, e que faz tudo por higienizar todos os momentos, retirando os idosos da sua casa, enfiando os “velhos” num lar e se possível passando diretamente para a morgue, perdemos totalmente o contacto com uma importante e incontornável parte da vida.
O que é então uma boa morte? Posso começar por defini-la na negativa. Uma boa morte não é uma má morte. É uma morte que ocorre no final da duração normal de vida das pessoas (não sendo desde logo encurtada por suicídio, homicídio ou acidentes), de forma geracionalmente adequada (ou seja, quando por regra somos parte da geração mais velha, não existindo pais ou avós sobrevivos). É uma morte que ocorre no local onde estivermos mais confortáveis, se o desejarmos na privacidade do lar, acompanhados pelos nossos entes queridos e apoiados por uma equipa médica que nos traz conforto adicional, através de fármacos se for necessário.
Por outro lado, é uma morte da qual não se foge com o prolongamento artificial da vida, com ressuscitações e “entubamentos”, alimentação e hidratação forçadas de doentes terminais, deixando os processos fisiológicos normais da morte natural ocorrer, sem grandes interferências e evitando sofrimento. É uma morte que é triste e lamentada, mas que não corresponde a uma tragédia. Uma morte serena a nível físico e mental, sem dor, sem angústia, com a tranquilidade de quem não deixou nada por tratar.
A hora da morte não nos pertence. Uma vez que não sabemos quando ou como a morte ocorre, nem sempre podemos controlar todas estas variáveis. Mas é sempre bom que reflitamos sobre elas e demos a conhecer os nossos desejos, no caso de caber aos nossos entes queridos tomar decisões sobre estes assuntos. Podemos (e devemos) preparar-nos e pensar nas questões práticas. Quantos de nós, que se consideram jovens (mesmo com quarenta anos e mais grisalhos que outra coisa qualquer), deixam os seus assuntos em ordem? Temos disposições testamentárias que satisfatoriamente tratam dos pertences? O que queremos que aconteça aos nossos restos mortais? Como devem ser as cerimónias fúnebres? Que mensagens queremos deixar aos que nos sobrevivem?
Igualmente importante, e ainda mais urgente, é cuidar da morte de quem amamos. Falamos com os nossos avós sobre a sua partida? Tanto sobre as questões testamentárias, como eventuais desejos acerca das cerimónias fúnebres, e até as ideias que temos sobre a eventual vida para lá da morte. E se não conversamos sobre estas coisas, é porque não os queremos afligir ou porque fazê-lo nos traz desconforto? Certamente não vivemos na ilusão de que os idosos não sabem que um dia, tal como nós, vão morrer…! Esforçamo-nos para preservar a memória dos nossos familiares mais velhos para lá da sua vida, colocamos as perguntas difíceis, ou continuamos a dizer a nós mesmos que vamos ter avós para sempre? Que vamos ter pais para sempre? Que nós vamos viver para sempre?
Ajudar os outros a que tenham uma boa morte é uma boa ação incrível, que pode parecer inglória dada a sua natureza íntima, e porque raramente vemos a gratidão de quem a recebe, mas torna estas transições mais suaves para quem parte, e quem fica.
Ajudar os outros a que tenham uma boa morte é uma boa ação incrível, que pode parecer inglória dada a sua natureza íntima, e porque raramente vemos a gratidão de quem a recebe, mas torna estas transições mais suaves para quem parte, e quem fica. Relacionarmo-nos com estes tão dignos momentos pode também melhorar a nossa relação com a mortalidade e a finitude, inclusivamente a própria. Com a medicalização da morte e a mistificação da indústria funerária, caiu em desuso acompanhar os nossos entes queridos nas suas últimas horas, ou cuidar da sua preparação para a última viagem. Mas em muitos casos é possível que estes atos de amor e cuidado nos ajudem a fazer um melhor luto.
Falar sobre o conceito de uma boa morte pode também evitar muitos casos de eutanásias feitas pelo medo — pelo medo da dor, do desconhecido, do abandono, do peso que possamos impor aos nossos quando a doença e a idade nos tornarem mais dependentes. Enquanto tentarmos fugir da morte, estaremos condenados a temê-la e nunca a compreender. Proponho que a discutamos, de forma apropriada, desde tenra idade.
Só depois de abraçarmos todas as dimensões da morte — antropológicas, sociais, fisiológicas, psicológicas, emocionais, legais, morais, espirituais, culturais, económicas…. — poderemos começar a regular de forma compreensiva todos os campos adjacentes. Incluindo a eutanásia. Uma sociedade que discute as questões do final da vida de forma desassombrada está mais preparada para criar condições que garantam a dignidade das pessoas, no fim da vida, na morte, e após a mesma. Sem atalhos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.