Um tempo favorável para semear

Alargar o nosso horizonte, o nosso coração e a nossa generosidade para esta participação na magnanimidade de Deus não é algo espontâneo, nem fácil.

É em certa medida inevitável, no início desta Quaresma, recordarmos as últimas, vividas neste dois anos passados em registo de confinamento. Para alguns foram tempos de grande intensidade espiritual, em que foi possível dedicar mais tempo à oração, à leitura, potenciando os tantos recursos que foram sendo colocados à nossa disposição durante os confinamentos para fazermos a caminhada Quaresmal. Para outros, pelo contrário, o confinamento dificultou essa vivência interior que foi “minada” pela exiguidade do espaço físico e mental, pela preocupação e ansiedade face à incerteza dos dias e face ao sofrimento e solidão de tantos.

Este ano, marcados por algum cansaço, e quando esperávamos uma certa normalidade ou uma quaresma “sem história”, a realidade voltou a impor-se com um novo conflito armado (realidade esta que nunca deixou de existir em tantas geografias, mas que desta vez é mais próxima e por isso mais visível). Como viver então mais uma Quaresma, que se nos apresenta em contra ciclo com as nossas expetativas, mas que ainda assim se configura como um tempo favorável para o encontro com Deus?

De passagem por Moçambique em trabalho, no momento em que escrevo estas linhas, aproveitei para ler aqui a mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma. No meio de tantos artigos e propostas é possível que ainda não tenhamos tido a ocasião de a ler. A mensagem é curta (poucas páginas), simples, direta mas sobretudo muito certeira ( como nos habituámos por parte do Papa Francisco!) para os tempos que atravessamos. Não nos cansemos, diz-nos o Papa Francisco e São Paulo na frase que serve de inspiração a esta mensagem “Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

E no entanto, confiam e perseveram, não desistem. Adaptam e diversificam culturas, modificam as técnicas de cultivo, reforçam as técnicas de regadio e voltam a lançar a semente.

A mensagem retoma a tão clássica, mas sempre forte imagem, da sementeira e da colheita. Após uns dias a trabalhar com associações de agricultores no sul de Moçambique, a imagem ecoou em mim de forma particular. De facto, nestes dias cruzei-me com mulheres e homens camponeses que não se cansam de lançar a semente, mesmo face a tantas dificuldades e a tantas incertezas. Secas e inundações. Devastação dos campos por animais selvagens. Pragas. Terrenos pouco férteis. E no entanto, confiam e perseveram, não desistem. Adaptam e diversificam culturas, modificam as técnicas de cultivo, reforçam as técnicas de regadio e voltam a lançar a semente. Ainda e outra vez sabendo que florescerá e fortificará dando o cereal e o fruto necessário.

Mas o Papa Francisco alerta-nos também, nesta mensagem,  para uma realidade simultaneamente difícil e libertadora. Será que iremos colher os frutos da nossa sementeira, do nosso trabalho, do nosso suor? Será que nos devemos preocupar tanto com os frutos do bem? E se não virmos fruto nenhum? Indo diretamente à mensagem de Quaresma encontramos a resposta:

“Na realidade, só nos é concedido ver uma pequena parte do fruto daquilo que semeamos, pois, segundo o dito evangélico, «um é o que semeia e outro o que ceifa» (Jo4, 37). É precisamente semeando para o bem do próximo que participamos na magnanimidade de Deus: constitui «grande nobreza ser capaz de desencadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do bem que se semeia» (Encíclica Fratelli tutti, 196). Semear o bem para os outros liberta-nos das lógicas mesquinhas do lucro pessoal e confere à nossa atividade a respiração ampla da gratuidade, inserindo-nos no horizonte maravilhoso dos desígnios benfazejos de Deus.”

Esta lógica que atravessa a nossa vida profissional e social deixa também marcas na nossa vida espiritual e na forma como vemos a prática do bem. E com frequência instala-se o cansaço e o desânimo.

Alargar o nosso horizonte, o nosso coração e a nossa generosidade para esta participação na magnanimidade de Deus não é algo espontâneo, nem fácil. Pelo contrário. Estamos marcados pela eficácia, pelos resultados, por uma lógica de causalidade e consequência, ação e output, dar e receber. Esta lógica que atravessa a nossa vida profissional e social deixa também marcas na nossa vida espiritual e na forma como vemos a prática do bem. E com frequência instala-se o cansaço e o desânimo. Mas os tempos de germinação (na natureza, como na vida) são muitas vezes diferentes dos nossos prazos e metas. E conhecedor das nossas fragilidades, o Papa Francisco interpela-nos ao longo da mensagem com o mote “Não nos cansemos”.

Termino com uma pequena história. Num processo de auscultação, de há poucos dias, junto de uma associação de agricultores, reunimo-nos e sentámo-nos à sombra de árvores, em círculo, para analisar as necessidades e oportunidades que se perspetivavam para aquela comunidade. Tinha preparado um plano para aquele momento de trabalho e depois das apresentações, explicações sobre o que pretendíamos fazer, lancei as perguntas que eram o mote de arranque. Uma das agricultoras presentes interrompeu-me. “Não vamos rezar antes de continuar?” Parei, meia apanhada de surpresa. Já ia lançada… “Claro que sim” respondi e dei-lhe a palavra. A oração era simples e bonita de entrega a Deus daquele tempo de trabalho, para que nos ajudasse a discernir o caminho futuro da associação. Fiquei tocada e coloquei também nas mãos de Deus aquele momento. Pensei “De facto, tinha faltado este momento e faz todo o sentido. Não me voltarei a esquecer.”

Já no final do encontro, agradeci pela partilha e as conclusões a que tínhamos chegado em conjunto. Fechei o caderno, arrumei as canetas no estojo, recolhi as folhas do flipchat e levantei-me já pronta para as saudações de partida. Então ouço a mesma voz. “Não vamos rezar para agradecer e terminar este momento ?”

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.