Um país de incompetentes morais?

Somos hoje em dia um país de incompetentes morais: cuidamos mal da nossa memória; desprezamos a troca de ideias; e temos dificuldade em sustentar na prática aquilo que deveria levar a bom porto as nossas intenções.

“Um país de incompetentes morais.” Ouvi há uns dias esta expressão numa reunião. Falou-se de uma pessoa que era moralmente incompetente, no sentido de ser alguém que não cuidava do seu próprio desenvolvimento moral. Uma pessoa moralmente desleixada. Pareceu-me uma expressão interessante. Brutal, mas interessante. E pareceu-me também  muito adequada para a realidade atual do nosso país. Estou infelizmente convencido de que somos hoje em dia um país de incompetentes morais: cuidamos mal da nossa memória; desprezamos a troca de ideias; e, por razões difíceis de entender, temos dificuldade em sustentar na prática aquilo que deveria levar a bom porto as nossas intenções. Em conjunto, estas três coisas dão cabo de nós. Falarei brevemente sobre cada uma delas.

Cuidar da memória

Em primeiro lugar, cuidamos mal da nossa memória. O recente caso da drástica redução das Aprendizagens Essenciais que constituem os currículos escolares é um óptimo exemplo disto. Estamos a tornar vaga a presença muçulmana na Península Ibérica, a importância das ordens mendicantes para a construção da Europa, ou as razões que levaram à entrada de Portugal para a CEE. Deliberadamente, decidimos ignorar uma parte significativa das nossas raízes. Mas ignorar as nossas raízes como sociedade é o equivalente a ignorar os primeiros quinze anos da nossa vida como indivíduos. A nossa história não faz sentido se forem ignorados os anos que nos tornaram no que somos. E isto acontece no nosso país: conhecemos mal a história da democracia, a história dos descobrimentos, a história das conquistas sindicais, a história da presença judaica e islâmica no nosso território, os tormentos por que passaram os retornados ao nosso país no período pós-colonial. Conhecemos mal a nossa história. E isso é chocante. É chocante porque cuidar mal da nossa memória comum não nos permite entender as razões de nos termos tornado naquilo que somos. Torna-nos moralmente incompetentes, incapazes de dar valor ao percurso que nos fez chegar onde chegámos.

Cuidar mal da nossa memória comum não nos permite entender as razões de nos termos tornado naquilo que somos.

Deste ponto de vista, parece-me importante elogiar e dar destaque ao projecto Memoirs. Há muito pouco trabalho feito em Portugal que pegue num tema específico e o avalie partindo de um conjunto de ângulos diferentes. O trabalho liderado por Margarida Calafate Ribeiro e por António Pinto Ribeiro sobre identidades pós-coloniais é complexo e competente: permite olhar para a vida pós-colonial com os olhos de retornados, de poetas, de musicólogos, de literatos, de filósofos, sociólogos, ou artistas plásticos. Promover projetos como este ajuda-nos a apropriar-nos da nossa própria história. Ajuda-nos a valorizar o percurso que nos fez chegar até a este ponto da história. E torna-nos, com isso, moralmente mais competentes.

Empenhar-se na discussão

Em segundo lugar, desprezamos a troca de ideias. José Ribeiro e Castro escreveu recentemente no Ponto SJ que os portugueses continuam a não ter tomado posse da sua cidadania europeia – mesmo passados 30 anos da nossa entrada para a então CEE. Não nos importa particularmente o que está em causa nessas eleições, ou por soarem demasiado distantes geograficamente ou por parecerem uma repetição desnecessária dos eventos eleitorais que vão acontecendo domesticamente. O que se dava a entender naquele texto é que isto não acontece só em relação às questões europeias: efetivamente, como povo político, teimamos em não nos apropriarmos das grandes questões que vamos vivendo. Talvez por essa razão tenhamos um debate tão fraco no espaço público (a falta de qualidade do debate sobre a eutanásia, sobre os contratos de associação dos colégios, sobre o encerramento de maternidades no passado, sobre a subida do ordenado mínimo, ou sobre o desenho urbanístico nas nossas cidades inundadas pelo turismo, são tudo bons exemplos desta falta de qualidade do debate que nasce da falta de apropriação das grandes questões). Talvez também pela mesma razão, tenhamos em Portugal um défice evidente de verdadeiros intelectuais públicos (Pacheco Pereira, Maria Filomena Mónica, ou Vasco Pulido Valente são alguns dos poucos sobreviventes de uma geração que se empenhava publicamente na discussão das grandes causas do seu tempo – e que foram hoje em dia suplantados por Francisco J. Marques, Nuno Saraiva, ou Pedro Guerra no que toca a tempo de antena nos assuntos que aparentemente merecem verdadeiramente ser discutidos). Desprezamos a troca de ideias sobre as coisas que realmente interessam – e por essa razão não somos capazes de perceber a seriedade dos nossos argumentos, dos argumentos dos nossos opositores, das implicações que as decisões políticas têm para a vida dos afetados pelas decisões tomadas, etc.

Desprezamos a troca de ideias sobre as coisas que realmente interessam – e por essa razão não somos capazes de perceber a seriedade dos nossos argumentos, dos argumentos dos nossos opositores, das implicações que as decisões políticas têm para a vida dos afetados pelas decisões tomadas, etc.

A tentativa esboçada pelo Ponto SJ de lançar um debate sério em torno das ideias principais que estarão presentes no último ano desta legislatura é um exemplo do que deve ser feito para que a nossa competência moral possa ser recuperada. Ler e discutir com aqueles com quem à partida não se concorda é um exercício importante de esclarecimento intelectual, moral e social. Será também isto que no futuro a Brotéria procurará fazer. A possibilidade de compreender o outro, mesmo discordando dele, tem valor moral. Permite corrigir erros quando isso possa ser feito; mas permite também corrigir o meu ponto de partida e a acusação fácil de que o ponto de partida do outro é perverso, maldoso, ou destrutivo. Mais uma vez, promover projectos como este ajuda a que nos apropriemos das questões importantes da vida do nosso país. E isso torna-nos moralmente mais competentes.

Pôr em prática as intenções

Em terceiro e último lugar, temos dificuldade em sustentar na prática aquilo que deveria levar a bom porto as nossas intenções. Temos hoje  em Portugal um modo absolutamente arcaico de fazer política. Passados mais ou menos 20 anos, é urgente retomar a discussão sobre a regionalização – definindo os termos, a abrangência, os poderes, etc. Vivemos num país onde é gritante a distância que vai dos centros de tomada de decisão ao lugar onde as decisões tomadas têm impacto real. A resposta que tem sido dada ao flagelo dos incêndios é representativa disto – mas não só: em relação ao turismo, ao urbanismo, ao acolhimento de migrantes, continuamos a viver num país que idolatra a centralização e que se recusa a perceber que os mecanismos de auscultação e decisão locais são fundamentais para que se possa regenerar um tecido social demasiado fustigado pelo que acontece em Lisboa e no Porto. A incapacidade de dar voz às populações locais é altamente destrutiva. Desmotiva, degrada, gera desinteresse. Impede que a solução para os problemas locais parta de quem os vive localmente e de quem tem capacidade para fazer juízos morais sérios sobre os assuntos em questão (além de com frequência acrescentar ao processo político uma medida de opacidade que pode levar a todos os tipos de corrupção). E por isso torna-nos, também, menos competentes moralmente.

A incapacidade de dar voz às populações locais é altamente destrutiva. Desmotiva, degrada, gera desinteresse.

Temos tido, apesar disto, um ou outro sinal de interesse na auscultação das populações locais. As várias propostas para dar voz aos moradores nas zonas mais tocadas pelo fenómeno do alojamento local, que tem trazido grandes benefícios e grandes problemas concretamente ao centro de Lisboa, são um passo importante. A ligeira reapropriação das autarquias das medidas de prevenção dos incêndios são também um passo importante. Mas o exemplo mais evidente que temos desta capacidade de dar voz às populações locais é o trabalho da vasta maioria das IPSS espalhadas pelo país. Aí sim, as populações locais são ouvidas. No monumental estudo coordenado por Américo Mendes sobre o estado das IPSS em Portugal (onde se rebate absolutamente o mito de que as IPSS desperdiçam recursos e saem caras ao erário público), diz-se que quase três em cada quatro autarquias nacionais têm equipamentos de IPSS. Isto diz muito sobre a necessidade que as populações locais têm de dar solução a problemas que são detectados localmente. Muito mais do que decisões centralizadoras, o que o país precisa é de dar voz – e recursos – a quem localmente se depara com questões que o Estado não resolve. Se fizermos isto, prestaremos mais atenção às questões que promovem o desenvolvimento dos cidadãos do nosso país. E isso tornar-nos-á moralmente mais competentes.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.