Um modo poético de existir: a poesia como estilo de vida

A poesia será uma anti-complacência, uma denúncia radical, ao mesmo tempo que uma obediência, uma luta para aprender a deixar de resistir.

Há alguns anos atrás, um colega confessou-me que alguém lhe havia dito que um poeta seria aquele capaz de caminhar pausadamente debaixo da chuva mais intensa. Desde então esta imagem não me abandonou.

Haveria, então, um modo poético de existir, para lá de um ofício linguístico; talvez uma presença, um desaforo, um atrevimento, uma devassidão, quase como aquela que Roland Barthes sentiu ao olhar para uma fotografia do irmão mais novo de Napoleão. Diante dela revelou-se nele a evidência: “vejo os olhos que viram o imperador”. No entanto, percebendo que ninguém parecia partilhar ou compreender aquele espanto, esqueceu-o. “A vida é assim feita de pequenas solidões”, garantia. E, de facto, não estaremos muito distantes de um dos primeiros lugares desse modo poético de existir ou de habitar, como expressou Hölderlin e Heidegger depois dele, pois se o poeta, como indica Daniel Faria, é aquele que encontra pela primeira vez as palavras[1], uma misteriosa solidão cercará permanentemente os seus murros, algo ainda mais dramático se pensarmos que essa enunciação procura expressar um mundo em que o próprio poeta já vive e o qual ainda não consegue nomear, quase como se fosse uma mudez, um exercício semelhante àquele de um padre do deserto que “durante três anos viveu com uma pedra na boca, até que apreendeu a viver em silêncio”.

Há, nesta linha, um consequente desconforto, que leva, não por acaso Rilke a afirmar que “todo o anjo é terrível”. Herberto Hélder di-lo-á de outra forma: “não sei como dizer-te que minha voz te procura”, pois “há sempre uma noite terrível para quem se despede o esquecimento. Para quem sai, ainda louco de sono, do meio do silêncio. Uma noite ingénua para quem canta”. Uma noite descolada e abandonada onde a pele se rasga no orvalho, pois da mesma forma que o “mais belo dos filhos dos homens” é “aquele que não tem onde reclinar a cabeça” e, simultaneamente, “aquele de quem se desvia o olhar”, rapidamente intuímos que a beleza capaz de deslocar os nossos olhos é absurdamente antagónica, muito mais semelhante à estranheza de Francis Bacon que, indo a talho, assumia que achava sempre surpreendente não ser ele a “estar ali em vez do animal”.

No entanto, quer desconforto, quer solidão, prepara-nos para sobreviver à banalidade

No entanto, quer desconforto, quer solidão, prepara-nos para sobreviver à banalidade. Clarice Lispector chegava mesmo a falar da devastação interior causada pelos períodos de incerteza, inconstantes e variáveis na duração, entre os vários trabalhos que, embora permitindo o espaço para o nascimento de algo novo, não traziam consigo a garantia de que tal acontece-se. “Eu acho que, enquanto não escrevo, eu estou morta”, admitiu numa famosa entrevista. A verdade, é que nem a poesia, nem este modo poético de existir, podem configurar, conforme muitas vezes gostaríamos, uma alternativa permanente a um outro modo, talvez mais comercial, instantâneo e superficial, de entrar na realidade, porque a poesia é sempre algo instável, em ameaça, em suspensão, algo ferido pela trivialidade e não poupado à vulgaridade, como quando gostaríamos de arriscar outras palavras sem que isso nos seja possível, sabendo que qualquer uma delas, se ditas, poderão ser irremediáveis, ultimas e finais, como um “um nó de sangue na garganta, / um nó de ar no coração” (Herberto Hélder).

“Dizia que ao chegar se olhares e não me vires / nada penses ou faças vai-te embora / eu não te faço falta e não tem sentido / esperares por quem talvez tenha morrido / ou nem sequer talvez tenha existido”, terminou, assim, Ruy Bello o poema Muriel deixando, com efeito, mais um indício. A poesia será uma anti-complacência, uma denúncia radical, ao mesmo tempo que uma obediência, uma luta para aprender a deixar de resistir. Quem, na verdade, ousaria dizer no seu dia-a-dia, sem medo ou vergonha, “tivesse ainda tempo e entregava-te o coração” (J. T. Mendonça), ou perguntar: “por que é que estou à chuva? Por que é que não entro se sei que a tua voz me chama? Chama-me mais alto, insistentemente. Bate nos vidros, quebra os vidros, vem buscar-me com as mãos mesmo cortadas” (D. Faria)? De facto, em certo sentido, e retomando a imagem inicial, a tarefa da poesia é desabrigar, desabrigar da condescendência, desabrigar do segredo.

Nessa medida, uma imagem que pode ajudar a compreender, por fim, este modo poético de existir seja mesmo a luta bíblica de Jacob com aquela figura misteriosa e noturna no capítulo 32 do livro do Génesis, pois a questão radical levantada pela possibilidade da poesia como estilo de vida é saber se optamos por vencer a batalha que, tantas vezes corpo a corpo, travamos também connosco próprios para nos auto-preservarmos, ou aceitamos uma derrota absoluta, sem ressentimentos, seguindo a advertência do Senhor: “quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por Minha causa e pelo Evangelho salvá-la-á!”.

 

[1] “Ora, o poeta, justamente, não é o sábio: o que vê mais fundo, nem é o que diz melhor: esse é o músico. O que poeta é o que descobre. Isto é, o que vê primeiro”.

 

Foto de João Cabral – Pexels

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.