Um lugar escuro

O suicídio continua a ser uma das principais causas de morte na adolescência, e continua a haver um silêncio abandonado à sua volta que mais devia ser um grito que rebentasse o céu!

Hoje escrevo de um lugar desconfortável.

Costumo dizer que a primeira frase dos meus textos me traz tudo o resto. Mas hoje não.

Porque o desconforto no início paralisa e a página custa a preencher.

Mesmo com sol a entrar pela noite dentro, nestes dias quentes do verão desejados há meses, há lugares escuros e desconfortáveis de que não adianta fugir, para que sejam cada vez menos.

Estávamos todos a postos. Paralisados, mas preparados para o movimento que se seguiria.

Durante os minutos que precederam a entrada daquela miúda, da idade da minha filha mais velha, na sala de reanimação, o meu pensamento partiu e vagueou.

Pelos olhares por de trás das máscaras julgo que, nesse compasso de silêncio, teremos todos estado noutro lugar. O lugar desconfortável das perguntas sem resposta.

O som da ambulância anunciava a chegada.

De volta à sala de reanimação.

O aparato. Todos a dar de tudo. Vozes de comando. A ciência a funcionar. O corpo violado por mãos, tubos, cateteres. A troca de braços, pelo cansaço, para manter a bomba pulsante. As luzes, os sinais sonoros…

E depois a ruidosa linha isoelétrica seguida de um silêncio devastador.

A dor arrebatadora da morte de quem a procurou cedo de mais.

A irreversibilidade de quem tinha ainda tanto para dar, para afirmar, para dançar, para namorar, para abraçar, para sonhar, para construir, para lutar!

O suicídio continua a ser uma das principais causas de morte na adolescência, e continua a haver um silêncio abandonado à sua volta que mais devia ser um grito que rebentasse o céu!

A morte de um adolescente às suas próprias mãos tem que questionar as nossas certezas e convicções.

A morte de um adolescente às suas próprias mãos tem que questionar a sociedade sobre as vezes que as suas vozes são caladas, que a sua sexualidade é vítima de humilhação, que as suas opiniões são infantilizadas, que a sua dignidade é agredida, que a cor da sua pele é discriminada, que o seu aspeto é criticado, que a sua verdadeira essência é menosprezada se não encaixa no que muitos chamam de normal.

Alguns perguntarão:

Onde estava Deus?

Porque permitiu Deus que este horror acontecesse?

Eu pergunto:

O que nos faltou perguntar?

Para onde desviámos a nossa atenção?

O que nos faltou ouvir?

O que não quisemos mudar?

Que novos caminhos não arriscamos percorrer?

Que liberdades não respeitamos?

Que limites não estabelecemos?

Que sonhos desencorajamos?

Porque desacreditamos?

Eu acredito que, no colo do Deus do Amor, haverá como esta miúda de olhos verdes e cabelo curto, que a ciência não conseguiu salvar, muitos outros rapazes e raparigas sedentos de gestos que os salvarão destes lugares escuros nos dias de Verão em que o sol se prolonga pela noite dentro.


Linhas de Apoio

SOS Voz Amiga
Lisboa
Das 16h às 24h
213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660
Linha Verde gratuita – 800 209 899 (Entre as 21h e as 24h)

Conversa Amiga
Inatel
Das 15h às 22h
808 237 327
210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto
Das 16h às 23h
228 323 535

Voz de Apoio
Porto
Das 21h às 24h
225 506 070

SOS ESTUDANTE
Diariamente das 20h às 01h
239484020

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.