Um livro para as férias

É um bom livro, mas é um livro difícil e, no entanto, quem é que disse que a leitura tem de ser fácil, às vezes, temos de olhar uma natureza morta o tempo suficiente para descobrirmos que, afinal, é bela e está carregada de vida.

Eu devia vir aqui sugerir um livro para as férias, mas a verdade é que ultimamente, o que mais faço é suplicar: Arranjem-me um bom livro para as férias!

Lembro-me que, em miúda, o verão trazia muitas expectativas: o tempo sem fim e sem horários, o sol, os amigos e aquela montanha de livros que eu tinha escolhido para ler até cair para o lado, a qualquer hora do dia ou da noite, em qualquer lugar e eu aguardava verdadeiramente por isso.

Agora, o tal do tempo das férias encurtou, mas eu continuo a ansiar por essa época de leitura, se possível e ainda, até cair para o lado, de preferência, num final de dia na praia, àquela hora em que as gaivotas já tomaram conta do areal, o mar fica mais escuro e há um rumorejar que literalmente se espraia.

Por isso, se tiver uma sugestão de leitura para as minhas férias, venha de lá ela, só posso agradecer, mas que venha com um daqueles livros que nos engolem por inteiro (olha a exigência).

Qual foi o último livro que tomou conta de si ao ponto de se esquecer das horas do relógio? De preferência, e já agora – é só uma coisinha de nada – um livro em que as personagens não sejam tão redondas quanto previsíveis, mas que venham com aqueles estratos humanos de graça e pecado, pois, convenhamos, a humanidade é feita dessa nem sempre equilibrada alquimia dos dois lados da medalha e, se for possível – é só mais isto – com um enredo onde a história não seja nem uma tela cor-de-rosa de beatitude, nem uma tempestade sufocante de desgraça.

É tão bom embrenharmo-nos num bom livro, mas nas férias, queremos que ele venha com a medida necessária de qualidade e luz.

Dou por mim a pensar na parábola do semeador e achar que a literatura pode ser um pouco assim, a semente lançada à terra, à procura de terreno fértil para germinar. Nós, quando agarramos num livro, somos esse campo aberto onde pode nascer a comoção, a esperança, a fé, a compaixão, a alegria, o riso, o perdão, a perseverança, a força ou uma pitada mais de sabedoria.

O livro pode obrigar-nos a caminhos nem sempre suaves, feitos de histórias duras, mas a arte do autor está em fazer-nos navegar por essa tempestade, conduzindo-nos à última página com mais alguma coisa do que lá estava antes.

Sim, a literatura ensina, não nos diz o que pensar, mas guia-nos na experiência de pensar, sendo que o caminho que fazemos nos livros é parte nosso, parte do autor, parte das personagens e uma parte muito grande que é só do espírito e do que acontece em nós, talvez com surpresa ou como repescagem de memória, a sinapse inesperada que aparece ali com estrondo e que nos faz sorrir, umas vezes por dentro, tantas vezes, por fora.

A literatura não nos ensina a viver, mas revela-nos o que é viver, aqui, ali e acolá, num contexto igual ao nosso ou num outro tão radicalmente diferente, leva-nos pela mão e, de repente, estamos noutra pele, noutra casa, noutro país, noutro tempo, quem sabe, noutro planeta, noutra religião. Abrimos um livro e começamos a viver numa alegria, numa tristeza, num sofrimento, numa conquista, numa família, num grupo de amigos, num campo de batalha, numa separação, num encontro, numa superação.

O livro é a exploração infinita das possibilidades de muitas coisas, é a aproximação inacabável à nossa condição humana, a esse ofício de cá andar a viver os dias, com tudo o que neles cabe e, nessa medida, é uma semente de construção desse dom importante da empatia.

O livro é a exploração infinita das possibilidades de muitas coisas, é a aproximação inacabável à nossa condição humana, a esse ofício de cá andar a viver os dias, com tudo o que neles cabe e, nessa medida, é uma semente de construção desse dom importante da empatia.

Acabei de ler – pasme-se, uma sugestão de leitura -, o Demon Copperhead, que é um livraço que quase (realço, “quase”) me conseguiu engolir. Trata-se da história de um rapaz que, como diz a contracapa, nasceu do lado errado da sorte e que procura, no tempo que decorre entre a infância e a adolescência, o afeto de uma família, em particular, de uma mãe e a rede de segurança que nos é dada pela amizade e pelo amor, tudo isto no contexto de uma América rural degradada, perdida nas drogas e no álcool, que gera famílias desestruturadas e que obriga à intervenção de serviços de institucionalização que são uma miséria de interesses manipulados e abandono. A autora, Barbara Kingsolver, procurou reescrever no nosso tempo, a história de David Copperfield de Charles Dickens e consegue fazê-lo na voz de um miúdo que enfrenta o pior da vida com um misto de humor, arrogância, luta e procura desesperada por aquela fonte de carinho que deveria ser dada a qualquer ser humano em fase de crescimento. O mar que Demon tão desesperadamente quer olhar pela primeira vez é uma imagem desse amor mergulhado de que tanto precisa e com o qual anda num jogo de sombras, meio às escondidas, como se o não merecesse. É um bom livro, mas é um livro difícil e, no entanto, quem é que disse que a leitura tem de ser fácil, às vezes, temos de olhar uma natureza morta o tempo suficiente para descobrirmos que, afinal, é bela e está carregada de vida.

Outra autora que descobri no ano passado e que é mestra nesta verdade da sombra e luz, é a Carla Madeira cujos livros nunca partem de uma coisa bonita, antes pelo contrário, o terreno de onde nascem é terrível, impensável, aquela dor a que nem conseguimos dar nome, mas o caminho que as personagens (nada perfeitas) palmilham pelo meio disso é sempre extraordinário e deixa-nos boquiabertos com o tamanho possível do que de bom e de mau pode acontecer em nós.

Se ainda não leu, o premiado Tudo é rio, A natureza da mordida ou Véspera, prepare-se para um misto de violência e beleza, crueldade e amor, pecado e perdão, porque, como diz uma das personagens do primeiro, “a vida dá um jeito de manter a gente vivo mesmo quando a gente morre de dor”.

Talvez os bons livros se meçam às camadas ou, se calhar, são as personagens e os enredos que se enriquecem com isso.

Não há gente perfeita, há gente e não há duas vidas iguais, sejam elas reais ou imaginárias. Nós andamos para aqui todos a fazer o melhor que conseguimos, a arrancar de cada instante o melhor que podemos e a seguir os exemplos que nos dão, a cair nas esparrelas do mundo e a levantar-nos de seguida, como podemos, mais mazela, menos mazela, mas a tentar ainda a bondade seguinte. A literatura que não seja fiel a isto, é mentirosa e não pode semear nada de bom.

Se depois destas linhas desordenadas tiver ainda pendente a sugestão de um bom livro para as férias, não se acanhe, eu agradeço.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.