Há uns dias atrás, no meio de uma conversa, uma aluna, com alguma desfaçatez, chamou-me Grinch. Ao início, como sou sportinguista, levei isso como um grande elogio, mas mais tarde percebi que tal se devia à minha posição sobre o Halloween e fiquei mais preocupado. Felizmente, nessa mesma noite foi visitado pelo fantasma do Halloween passado, presente e futuro, o que me fez, no mínimo, refletir.
Mal comecei a viagem no tempo, equacionei se uma certa posição contra o Halloween, tão enraivecida como a de Ebanezer Scrooge face ao Natal, não pode derivar de uma dificuldade pessoal em aceitar a felicidade e boa disposição dos outros e de permitir que, na nossa própria vida, essa mesma felicidade e boa disposição, muitas vezes sem motivo, se possa manifestar. Foi, então, que o fantasma do Halloween passado me mostrou imagens das festas de Halloween na minha escola primária e dos rostos que, ano após anos, bateram à porta de casa pela mesma ocasião. Em pânico, cheguei mesmo a temer que, mesmo inconscientemente, já podia ter sido um perigoso neo-adorador do paganismo, do oculto, do esotérico, que aquelas pessoas, que saem à rua dizendo, porta à porta, “doçura ou travessura”, seriam mini arautos de uma perigosa nova ordem mundial, mas percebi que o que eu gostava mesmo era de ver a luz a cintilar dentro das abóboras recortadas, e que miúdos e adultos vestidos de bruxa, Drácula ou esqueleto, ainda não seriam bem o sinal inequívoco da proximidade do apocalipse.
O facto é que, numa sociedade que tenta impor à bruta um estilo de vida saudável, o que faz realmente falta são iniciativas como esta, que buscam a procura de guloseimas. Aliás, haverá algo mais contracorrente que, quando as crianças são impedidas de comer panikes e seus derivados na escola, essas mesmas crianças se organizem, saiam de casa, no meio do frio do outono, e peçam doces, em claro protesto contra as recentes medidas do governo? Para mim, que sou guloso e neto de comunista, é juntar o útil ao agradável.
Mas possivelmente mais corajoso que dizer o quão somos contra algo, é urgente tomar a posição de quem se arrisca a compreender.
Qual não é o meu espanto e aparece, também, o fantasma do Halloween presente que começa logo por me perguntar: “Oh João: achas que o Cristianismo, que se desenvolveu quando existia a violência dos espetáculos romanos, conviveu com os duelos medievais e o fogo da inquisição, venceu as divisões do cisma do ocidente e do oriente, se pode sentir quase existencialmente ameaçado pelo Halloween?” Fiquei envergonhado. Ao que ele me leva a ver a festa de Halloween da minha aluna.
Quando chegamos vemos que ela, tal como acontece na história de Charles Dickens, confrontada com a minha antipatia face à festividade, diz bem alto “tenhamos pena dele”, e erguendo um copo de coca-cola no ar, convida todos a participar num brinde. E vendo bem, talvez seja essa a postura que uma militância acesa contra o Halloween pode gerar: pena e condescendência, depois da qual a festa segue sempre sem grandes percalços ou preocupações.
Mas o fantasma do Halloween presente era particularmente maçador e, para terminar, decidiu levar-me a visitar os Museus do Vaticano. Percorrendo corredores e corredores de escultura, foi-me apercebendo que em certas peças havia sido feito um corte muito preciso. Soltei uma gralhada e confessei que achava aquilo ridículo, ao que o Halloween presente me responde: “O que tu queres fazer com o Halloween é o mesmo. Pensas que vais terminar com ele, mas só estás a chamar mais à atenção. É precisamente esse o resultado do puritanismo extremo: o ridículo”. Acreditei que desta nunca mais me recomporia, mas tinha mais um encontro marcado.
De facto, o espírito do Halloween futuro era o mais aterrador, considerando que ele me mostrou o resultado, a longo prazo, da minha posição: eu dentro de uma casa, fechado a sete chaves, a condenar todos aqueles que circulavam na rua, sem que os tivesse convertido, conforme queria. Não tive outra solução senão intervir: “Vamos lá ver, não se pode comparar o Natal ao Halloween. Conheço bem a história do Dickens, mas no Natal nós festejamos o nascimento de Jesus, a luz e a paz, ao passo que no Halloween é o medo, as trevas e a vingança que são evocados”. Não sabia o que estava a dizer. O Halloween futuro vira-se para trás e responde-me dizendo: “Talvez tenhas razão. Mas possivelmente mais corajoso que dizer o quão somos contra algo, é urgente tomar a posição de quem se arrisca a compreender. O teu problema é não sentires o desassombro das comunidades cristãs primitivas que, convivendo, ano após ano, com a festa do Sol Invictus, a foram moldando até chegar ao Natal como hoje o conhecemos. A tua atitude até pode ser indestrutivelmente coerente, mas só te devora por dentro. Mais importante é perguntares que bem ainda podes fazer”. Conclui, rapidamente, que mais valia ter estado calado e acordei tal como o Scrooge, não na véspera de natal, mas na noite de Halloween.
Dias depois disseram-me que me tinha vendido e comprometido, e que sou mesmo neto de comunista, mas, muito embora a minha aparelhagem tenha começado a tocar o Dies Irae enquanto estou a terminar este texto, não me arrependo de ter citado dois velhos provérbios populares: rir é o melhor remédio e quem te avisa, Ebanezer, teu amigo é.
Fotografia de Drew Hays – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.