Até finais do século passado, havia um muro político à esquerda que era intransponível. À esquerda do socialismo, até poderia haver com quem a esquerda democrática pudesse partilhar algumas preocupações sociais ou alguma visão sobre a economia e a tradição, mas a divergência sobre a democracia e a liberdade era tão fundamental que a mistura era impossível. Foi nesse contexto que, em Portugal, Mário Soares recusou qualquer aproximação ao Partido Comunista e que o combateu. A linha divisória era uma linha vermelha. E foi por isso que, nos anos 70 do século passado, o eurocomunismo de Santiago Carrillo, em Espanha, de Enrico Berlinguer, em Itália, ou mesmo de Georges Marchais, em França, foi tratado de outra forma. Porque recusavam o comunismo soviético. Só isso os tornava aceitáveis à mesa das democracias europeias. E, mesmo assim, com distância, excepto no caso italiano.
O desaparecimento da ameaça soviética, quando não matou os partidos comunistas (como em França, Itália e Espanha, por exemplo), fê-los parecer inofensivos. Já não defendiam nada que fosse (parecesse) um perigo real. Daí à coligação na Câmara Municipal de Lisboa, liderada pelo futuro Presidente da República, Jorge Sampaio, ou à Geringonça, de António Costa, foi um pulo. E uma transformação da esquerda social-democrata que, em muitos casos, entretanto absorveu o discurso da esquerda à sua esquerda. Sem linhas vermelhas, houve, em alguns temas, diluição e confusão. Esse é um problema da esquerda democrática europeia e portuguesa, e também da esquerda americana: tornar-se uma versão radical de si própria, obcecada (ou condicionada) pela agenda identitária. A direita tem outro problema. Com algumas semelhanças, porém.
Quando e onde era necessário e indispensável, a direita fez o corte com a direita não democrática. Em Portugal, e mesmo em Espanha (com as nuances da política espanhola), por exemplo. Como em Itália. Havia diferentes tons de direita, mas havia um que já não era aceitável. E quem estabelecia essa fronteira era a direita – não era (não precisava de ser nem ocorreria que fosse) a esquerda. No pós-guerra, na Europa, no pós-revolução, em Portugal, a direita à direita da direita democrática não era aceitável, porque não partilhava valores fundamentais e defendia ideias intoleráveis para o sistema democrático liberal em que os europeus (e, mais tarde, os portugueses também) queriam viver. Mesmo que houvesse coincidência de opiniões num ou noutro tema. A transformação política e eleitoral dos últimos anos, produto de uma muito maior transformação económica, tecnológica e social, parece estar a criar confusões nalgumas cabeças.
A transformação política e eleitoral dos últimos anos, produto de uma muito maior transformação económica, tecnológica e social, parece estar a criar confusões nalgumas cabeças. Alguma direita tem agora dificuldades em traçar a linha vermelha que a esquerda democrática em tempos traçou.
Alguma direita tem agora dificuldades em traçar a linha vermelha que a esquerda democrática em tempos traçou e que, entretanto, em muitos casos apagou. O que não deveria legitimar a réplica. E o sucesso eleitoral da direita nacionalista e populista não torna a determinação menos necessária. Pelo contrário. À direita da direita da Democracia Liberal haverá algumas preocupações comuns. E até algumas soluções. Mas há divergências absolutas e fundamentais. Que nem o interesse eleitoral, nem a irritação da esquerda, nem a desvalorização de frases, gestos ou discursos, podem tornar aceitáveis.
A direita pode-se preocupar com a imigração. Não pode alimentar o ódio ao estrangeiro. A direita pode estar preocupada com a liberdade de expressão e o policiamento da linguagem, mas não deveria confundir essas aflições com a possibilidade de proibir ou policiar a linguagem de que não gosta. Alguma direita pode acreditar que há uma decadência moral ou de valores, mas não pode escolher restaurá-los sem ser pela via do mercado livre das ideias. E por aqui fora. A lista de divergências entre uma e outra direita, mais do que extensa, é fundamental. O que separa é tanto, e tão importante, que não se confunde com o pouco em que podem coincidir.
Isto, que pode parecer pertencer ao universo da política interna, na verdade é central para entender o que se passa na política internacional.
O que Trump diz e se recusa dizer sobre Putin; o que Tucker Carlson, um agente da propaganda trumpista, diz sobre Putin; o que JD Vance, o vice-presidente norte-americano, disse sobre a Europa e, mais importante, sobre a Democracia europeia, e não disse sobre a ameaça russa à Europa e ao Ocidente; o que Elon Musk diz sobre partidos como a Alternativ fur Deutschland (AfD) e o empenho com que os promove, tem uma razão de ser óbvia. Esta América, a América de Trump, Vance, Musk e companhia, não é a América da Democracia Liberal nem é a América da defesa do Ocidente. Até podem parecer coincidir com alguns adeptos do Ocidente na defesa de alguns valores ou na preocupação com a crise de outros, mas esse alinhamento é acessório. Um defensor do Ocidente sabe que esses valores se defendem em democracia, combatendo ideias e os seus representantes em eleições. E admite, com pena, que pode ser derrotado. É a essência da defesa da democracia. Mas não tem a mesma consideração por aqueles que querem derrubar o sistema democrático liberal.
O trumpismo não é uma internacional conservadora e nacionalista, como alguns extremistas europeus querem fazer de conta ou fazer crer. O trumpismo é uma internacional reaccionária e iliberal que só formalmente, e onde é necessário, combate em democracia. A Democracia não é a sua preocupação. Nem a Liberdade. A sua visão do mundo, sim, é. E para lá chegar estará disponível para combater tudo. Nomeadamente, os democratas em geral, incluindo nos países tradicionalmente seus aliados. Mas que deixam de o ser por, na opinião do trumpismo e companhia, os países europeus, enquanto não forem governados pelos Órbans e companhia, serem tão adversários quanto os seus adversários políticos internos. E é aqui que o tema, sendo de política externa, volta a ser de política interna.
Os liberais e conservadores que recusam o convívio com a direita para lá da direita liberal e democrática não estão mais perto da esquerda. Estão mais longe do extremo. E sim, essa distância é maior do que a distância que vai da direita liberal ou conservadora até ao centro.
Aqui chegados, vai ser preciso manter, de facto, linhas vermelhas. A grande diferença, à direita, pode-se resumir entre os que vêem com horror o que se está a passar e os que acreditam que estão a viver dias triunfais. Os primeiros são conservadores clássicos, são liberais clássicos. Gostam de ordem, do estado de Direito, de Liberdade, de pouco Estado e de nenhuma revolução. Os segundos são muito mais revolucionários que conservadores, muito mais estatistas que liberais e, sobretudo, preferem estar mais próximos do extremo do que do centro.
Trump e companhia, na segunda versão da sua presidência, são uma ameaça assumida às democracias liberais, por entenderem que as democracias liberais são uma ameaça à sua visão do mundo. É essa a causa do cisma. Parte da direita ficará do lado das Democracias Liberais e, portanto, do Ocidente. Outra parte, jurando que está preocupada com os valores ocidentais, deitará fora a democracia liberal para defender o seu programa político. Obviamente, não são democratas, não são conservadores, nem são liberais. Veremos onde nos levará esta guerra. E onde cada um escolherá estar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.