Ao celebrarmos os 650 anos das revelações da mística inglesa Juliana de Norwich, (1342-1416), constatamos que o seu pensamento permanece atual. Num mundo mergulhado em agonia, os seus escritos espirituais constituem e prefiguram uma mensagem de esperança, válida não só para a sua época, mas também para os nossos dias, em pleno século XXI.
Não obstante os avanços tecnológicos extraordinários do tempo presente, assistimos também a um sofrimento gritante à escala global. Em Inácio de Loiola o sofrimento está estreitamente associado ao pecado e a uma história de salvação. Inácio propõe-nos a contemplação de um mundo caracterizado por situações extremas: “uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo”,[1] no qual ocorre a encarnação em vista da nossa redenção. Apesar de estar a acontecer uma mudança de tempo ou de época, confiamos que Deus “habita e trabalha”[2] quer na Criação quer na História. Deus tem uma presença dinâmica no meio da História. Daí a profunda esperança, radicada em Deus. É Deus quem convida o ser humano para que colabore com Ele na transformação do mundo. É esta esperança que gera a confiança e a certeza de que “tudo acabará bem”. Precisamente a última exortação apostólica do Papa Francisco, de 15 de outubro de 2023, tem o título de C’est la confiance, Sobre a confiança no amor misericordioso de Deus. Esta exortação constitui um verdadeiro grito de esperança!
No contexto atual, somos confrontados com múltiplas variáveis que não nos permitem prever o rumo da vida e da história da humanidade na sua globalidade. Face a tantos conflitos bélicos no mundo, o Papa Francisco fala-nos de uma “terceira guerra mundial aos pedaços”: guerra na Ucrânia, na Terra Santa, Somália, Sudão, Burkina Faso, Iêmen, Nigéria, Mianmar e tantas outras caídas no esquecimento. E não podemos esquecer a questão, não menos grave, das alterações climáticas com que nos deparamos, agravada com a dificuldade de se chegar a um acordo, da parte das superpotências, sobre políticas e práticas que contribuam para minimizar o efeito de estufa provocado pelo uso de combustíveis fósseis.[3] E ainda, a tão premente e preocupante situação dos refugiados e dos migrantes; dos descartados da sociedade e do mundo; dos jovens que perdem a esperança no futuro; dos mais variados tipo de abusos; do materialismo vigente e de tantas outras formas, situações e variáveis que não respeitam nem promovem a dignidade humana.
Neste contexto mundial atual, em profunda convulsão, é de grande atualidade a mística inglesa Juliana de Norwich particularmente com os seus escritos Revelações do amor divino.[4] No tempo de Juliana, Norwich era a segunda cidade inglesa. Embora sendo eremita, e por isso confinada à sua cela, da janela oferecia acompanhamento espiritual a quem a procurava. Os escritos da Madre Juliana testemunham que era uma mulher com uma cultura invulgar para a época. Nesse tempo também se vivia uma “profunda crise humanitária, com a presença de epidemias (como a peste negra), fome, catástrofes naturais e guerras, que dizimavam as populações e tornavam os homens sem esperança e moralmente abalados, gerando um pessimismo e obscurantismo que somente a espiritualidade parecia conseguir restaurar”.[5] Embora sendo um tempo extremamente difícil, os escritos de Madre Juliana constituem um dos mais eloquentes e profundos testemunhos da esperança.
Pode surpreender-nos o interesse que o magistério da Igreja tem mostrado por esta mística. O Catecismo da Igreja Católica (1992), no parágrafo 313, cita Juliana de Norwich. O Papa Bento XVI dedicou a sua catequese de 1 de dezembro de 2010 a Juliana de Norwich. Por ocasião da celebração do 650º aniversário destas revelações à mística inglesa, o Papa Francisco enviou uma carta ao bispo de East Anglia, Peter Collins, na qual exalta a pertinência e a atualidade de Juliana de Norwich para o nosso tempo.[6]
Por ocasião da celebração do 650º aniversário destas revelações à mística inglesa, o Papa Francisco enviou uma carta ao bispo de East Anglia, Peter Collins, na qual exalta a pertinência e a atualidade de Juliana de Norwich para o nosso tempo.[6]
As referidas revelações ocorreram em maio de 1373 e tiveram a duração de apenas algumas horas[7] e foram assimiladas por Juliana ao longo de vários anos. A mística tinha pedido três graças ao Senhor: a primeira, a contemplação da sua paixão; a segunda, uma doença grave, a fim de conhecer melhor o sofrimento do corpo e o amor divino que tudo supera; a terceira, uma tríplice ferida, de contrição, de doce compaixão que uma alma amorosa poderia ter por Jesus que, por amor se fez mortal, desejando portanto sofrer com Ele e, finalmente, de desejo ardente de Deus.[8] As revelações ocorrem em resposta a este tríplice pedido. Nestas revelações, Juliana de Norwich recebeu a visão do rosto doloroso de Cristo e da sua flagelação.[9]
Juliana é uma mulher muito lúcida a respeito da gravidade do pecado, contudo isso não a impede de acreditar e experimentar a ação libertadora de Deus: “Frequentemente perguntei-me porque pela omnisciência de Deus o começo do pecado não foi impedido, pois me parecia que assim tudo estaria bem. Mas Jesus respondeu-me: foi necessário que houvesse o pecado mas tudo acabará bem.”[10] Esta ideia repete-se: “Há tantos atos maus a serem realizados, pressupondo tão grandes prejuízos, que nos parece impossível que venha algo bom no final. Contudo há uma grande ação ordenada pelo Espírito Santo que fará com que todas as coisas acabem bem.”[11] Mais tarde Juliana vai reconhecer: “Eu fui libertada do inimigo pela virtude da paixão de Cristo”.[12] E ainda: “Veremos verdadeiramente a causa de todas as coisas que Ele fez [a criação, a redenção a santificação] e, ainda mais, veremos as causas de todas as coisas que Ele tolerou [o pecado e o mau uso do livre arbítrio] ”.[13]
Quando contempla a paixão do Senhor, Madre Juliana mantém uma perspetiva integrada, nunca a dissociando quer do mistério do Unigénito divino, que vive desde toda a eternidade na comunhão com Deus, quer da ressurreição e ascensão, à direita de Deus: “A parte superior da alma de Cristo estava em paz com Deus, em completa alegria e felicidade. A parte inferior da sua alma, que é natureza sensível, sofreu para a salvação da humanidade”;[14] “Temos, agora, motivo de aflição, pois o nosso pecado é a causa das dores de Cristo; e temos, permanentemente, motivo de alegria, pois o amor infinito o fez padecer”.[15]
Quando contempla a paixão do Senhor, Madre Juliana mantém uma perspetiva integrada, nunca a dissociando quer do mistério do Unigénito divino, que vive desde toda a eternidade na comunhão com Deus, quer da ressurreição e ascensão, à direita de Deus: “A parte superior da alma de Cristo estava em paz com Deus, em completa alegria e felicidade. A parte inferior da sua alma, que é natureza sensível, sofreu para a salvação da humanidade”;[14] “Temos, agora, motivo de aflição, pois o nosso pecado é a causa das dores de Cristo; e temos, permanentemente, motivo de alegria, pois o amor infinito o fez padecer”.[15]
Na verdade, as revelações privadas não têm valor por si mesmas e só são aceites pelo magistério da Igreja quando, estando em sintonia com as Escrituras e com a Tradição da Igreja, delas decorram comunidades de fiéis mais reconciliados interiormente e dando mais fruto apostólico exteriormente. No final do escrito contendo as revelações, Juliana confessa que as refletiu profundamente ao longo de quinze anos a fim de procurar compreender o seu alcance. “Desejas aprender a intenção do teu Senhor nessa coisa toda? Aprende-o bem: o amor foi a sua intenção. Quem to mostrou? O amor. O que te mostrou? Amor. Porque o mostrou? Por amor. Permanece assim e aprenderás e saberás mais desse amor (…) Assim aprendo que o amor era a intenção de Nosso Senhor”.[16] E assim, “Todas as coisas acabarão bem. Tu mesma verás que todo o tipo de coisas acabará bem”[17]
Referências
[1] Santo Inácio do Loiola, Exercícios Espirituais, Apostolado da Oração, Braga, 2016, nº 106.
[2] Ibid., nº 235 e 236.
[3] Papa Francisco, Exortação apostólica Laudate Deum, sobre a crise climática, nº 44. Desde 1994 que os estados se reúnem anualmente na chamada Conferência das Partes (COP). Já decorreram vinte e oito edições sem que tenham registado avanços significativos.
[4] Juliana de Norwich, Revelações do amor divino, Paulus, S. Paulo (Brasil), 2018, Apresentação de Marcelo Maroldi.
[5] Idem
[6] “Papa, Juliana de Norwich: modelo de fraternidade para os tempos de hoje” (Vatican News, 16 de maio de 2023) ou “Pope marks 650th anniversary of revelations of Mother Julian of Norwich” (Vatican News 15 May 2023).
[7] Juliana de Norwich, Revelações do amor divino, capítulo 65
[8] Ibid., capítulos 2 e 3
[9] Ibid., capítulos 2, 4, 7, 8, 12.
[10] Ibid., capítulo 27.
[11] Ibid., capítulo 32.
[12] Ibid., capítulos 68 e 69.
[13] Ibid., capítulo 75.
[14] Ibid., capítulo 55.
[15] Ibid., capítulo 52.
[16] Ibid., capítulo 86.
[17] Ibid., capítulos 27 e 31.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.