Em todos os dias que vivi com a minha Avó, já ela andava pela casa a fazer alguma coisa quando eu acordava. E até à minha adolescência (quando a irreverência da idade me começou a deitar além de horas decentes), ficava ainda acordada depois de nos deitar a todos. Começou cedo a trabalhar; tão cedo quanto o tempo em que despertou para a leitura dos grandes existencialistas e poetas. Mulher de grandes convicções, rasgou publicamente, ainda jovem, o cartão de militante do Partido Comunista quando se deu conta que o ideal era uma utopia escrava da política. Com a mesma convicção, começou a entrar e sair publicamente das igrejas, a rezar e a encomendar as necessidades dos outros a Deus. À mesma mesa em que podia sentar Manoel de Mello, sentou mulheres cujo salário não cobria as despesas do mês nem pagava a violência dos maridos. Se tivesse estudos superiores, talvez tivesse chegado a ser activista política ou enfrentado o regime. Mas como nunca foi de títulos, procurou calar as injustiças sociais muito mais anonimamente.
À mesma mesa em que podia sentar Manoel de Mello, sentou mulheres cujo salário não cobria as despesas do mês nem pagava a violência dos maridos.
Se nós, os netos, a víamos cozinhar ou fazer renda durante o dia, o segredo da noite via-a frequentemente a ler Simone de Beauvoir ou versos de Ruy Belo. Se tivesse nascido uns anos depois – ou se não tivesse nascido mulher ou se não fosse filha do êxodo rural – talvez pudesse ter estudado mais, talvez pudesse ter ido para Lisboa, talvez alguma professora tivesse visto nela jeito para que fosse algo mais que uma operária. Brincava naturalmente com as palavras, nunca perdia um argumento e era comum ver os seus irmãos a procurarem nela um conselho (que, tanto quanto me lembro, seguiam fielmente). Perguntava o que andávamos a ler e deixava-nos brincar na terra, fazer fisgas de arame e representar peças de teatro inventadas por nós. Apoiou a descendência que foi para a universidade e nunca desvalorizou quem ficou pelas fábricas, campos e negócios locais. Porque, creio, via em cada um talentos únicos que, bem desenvolvidos, podiam ser levados ao infinito.
Na semana passada, no dia 21 de agosto, Sir Ken Robinson FRSA morreu da mesma doença que, há uns anos, levou daqui a minha Avó. Nasceu uma geração depois dela, nasceu homem e em Inglaterra. Apesar da poliomielite, não ficou fechado em casa enquanto os outros seis irmãos puderam estudar. Professor, escritor, investigador, conselheiro, orador são atributos que não chegam para falar deste que veio a ser um dos maiores educadores da nossa era. Em 2006, quando as TED eram ainda um evento anual em Monterey, Califórnia, Robinson foi dos últimos a aparecer em palco, ao final de quatro dias. The Future We Will Create era o mote para as talks desse ano e Sir Robinson acabou por ser o protagonista, nesse dia, da TED talk mais vista de sempre: Do Schools Kill Creativity?
Ora, o séc. XIX acabou há mais de cem anos e parece que continuamos a querer asfixiar os talentos naturais das crianças que chegam às nossas escolas, obrigando-as a sentar-se direitas durante sessenta minutos seguidos enquanto lhes expomos as matérias fundamentais para o seu conhecimento
Legendada em mais de sessenta línguas, a sua talk já teve mais de 66 milhões de visualizações. Para Ken Robinson, “a criatividade é tão importante na educação como a literacia e deve ser tratada ao mesmo nível”. No entanto, “estamos a educar pessoas sem ter em conta as suas capacidades criativas”. E por uma razão: porque “o sistema de ensino foi inventado para satisfazer as necessidades da industrialização do séc. XIX”.
Ora, o séc. XIX acabou há mais de cem anos e parece que continuamos a querer asfixiar os talentos naturais das crianças que chegam às nossas escolas, obrigando-as a sentar-se direitas durante sessenta minutos seguidos enquanto lhes expomos as matérias fundamentais para o seu conhecimento. Passamos horas a formular critérios de avaliação, a tentar ser fiéis ao currículo e a forma(ta)r o perfil dos alunos e alunas para que cheguem ao fim da escolaridade obrigatória como está previsto num documento normativo. Tudo seguindo uma hierarquia própria: primeiro, “estão a matemática e as línguas, depois as humanidades e abaixo as artes. E em praticamente todos os sistemas de ensino há uma hierarquia nas artes: a pintura e a música têm habitualmente mais importância do que o teatro e a dança. Não existe no mundo um sistema de ensino que ensine as crianças a dançar diariamente como se ensina matemática. (…) O que acontece é que à medida que as crianças avançam na escola, vamos ensinando progressivamente da cintura para cima até que, finalmente, nos focamos nas suas cabeças – e ligeiramente num dos lados.”
É certo que alguns sistemas têm tentado novas abordagens, mas pergunte-se aos professores a dor de cabeça que é “encaixar” as metas pretendidas nos instrumentos quantitativos de avaliação do saber.
Por outro lado, entre os pensamentos de todos os professores, há (sempre houve!) uma voz que apela à criatividade, que reconhece que os alunos e alunas não podem ser todos tratados igualmente, que a avaliação de um aluno ou aluna não se pode reduzir aos parâmetros da classificação.
Pelos corredores e gabinetes das nossas escolas, já se começam a ouvir as reuniões e as fotocopiadoras. Os professores já começaram a preparar as suas aulas – mesmo na incerteza dos tempos presentes. E talvez a insegurança seja tanta que nem vamos ter tempo para contar como foram as férias, urgentes de aproveitar ao máximo o número de horas lectivas que temos antes de voltarmos a entrar em estado de contingência.
Por outro lado, entre os pensamentos de todos os professores, há (sempre houve!) uma voz que apela à criatividade, que reconhece que os alunos e alunas não podem ser todos tratados igualmente, que a avaliação de um aluno ou aluna não se pode reduzir aos parâmetros da classificação. Mesmo que não o consigamos dizer em voz alta, todos os que vivemos no mundo da educação sabemos que já passou o tempo em que esta precisava de uma reforma – a educação não precisa de ser reformada, precisa de ser transformada. E, como todos os processos transformativos, precisa de coragem e audácia. Já que as novas circunstâncias nos obrigaram a alterar os procedimentos e as formas, por que não ousar think tanks para pensar realmente em novos modelos de ensino e aprendizagem em que cada aluno e aluna, segundo as formas de expressar únicas da sua inteligência, pode encontrar em si o melhor que tem?
O ensino profissional e artístico previu há anos que as inteligências técnicas fazem parte do ser humano. A introdução da Aprendizagem Baseada em Projectos (ABP) no ensino regular foi uma descoberta fantástica para o trabalho complementar e em equipa entre docentes e entre alunos e alunas. A exploração da criatividade e das soft skills dos alunos e alunas em certos ciclos de ensino e em certas disciplinas provou empiricamente que há crianças e adolescentes que têm mais jeito para umas áreas que para outras. Infelizmente, a rigidez do sistema e da burocracia faz com que aqueles que desejam ensinar a partir de novos modelos se vejam a braços com a tarefa impossível de encaixar a peça que não pertence ao puzzle onde lhes obrigam a colocá-la. E faz com que quem tem 5 a EV e um 3 para passar a Português e a História se tenha de contentar com um tem jeito para o desenho ou esteja condenado a ser o motivo de demora nas reuniões do conselho de turma.
[…] se alguém tivesse potenciado a harmonia das cores daquele rapaz do 5º ano em vez de o forçar a apoios extra de Francês; se alguém tivesse dito àquela menina que depois das aulas podia ter treinos de atletismo em vez de ir para o centro de estudos…
Se algum professor tivesse descoberto a forma criativa como a minha Avó usava as palavras como um professor, um dia, descobriu o talento de Gillian Lynne; se alguém tivesse potenciado a harmonia das cores daquele rapaz do 5º ano em vez de o forçar a apoios extra de Francês; se alguém tivesse dito àquela menina que depois das aulas podia ter treinos de atletismo em vez de ir para o centro de estudos…
Se alguém tivesse de começar um think tank sobre a transformação da educação e novos modelos de ensino e aprendizagem, que se atrevesse a escolher homens e mulheres apaixonados por ensinar, que se superaram porque nunca sentiram que se enquadravam; que gastasse longas horas a conversar com crianças e adolescentes e escutasse enquanto falavam das suas paixões; que entrasse numa escola e reconhecesse a sua variedade. Depois, que criasse modelos em que se classifica o progresso individualizado de cada pessoa, em que mais do que os meios, seja o fim que se deseja a conduzir esse processo. Se alguém quisesse transformar a educação, que apontasse a meta e, paciente e criativamente, acompanhasse aqueles que lá querem chegar, independentemente do caminho que precisam de seguir.
[Os excertos entre aspas são citações da TED talk de Sir Ken Robinson citada no início do artigo.]
Photo de russn_fckr – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.