“Vim a Comala porque me disseram que vivia aqui o meu pai, um tal Pedro Páramo.” O início do romance de Juan Rulfo promete uma jornada de redescoberta interior, de reencontro idílico com o pai desconhecido, mas acabará por confrontá-lo com a crueldade. Pedro Páramo, o pai, tinha já morrido. Havia sido uma personagem imoral, corrupta, que condenara a cidade à insónia e ao estado de lugar fantasma. Mas este não é, unicamente, o resumo de um dos romances mais conhecidos da literatura latino-americana, é, também, a sinopse do que pode ou não significar a cultura.
A certa altura, no primeiro episódio da saga Harry Potter, os tios levam o sobrinho (Harry) e o filho (Dudley) ao jardim zoológico. Uma multidão agita-se contra uma vitrina para ver uma enorme pitão. Tiram-se fotografias. Fazem-se poses. Bate-se ao vidro pedindo acrobacias. Harry, já sozinho, aproxima-se. É então que Dudley chega, empurra-o para o chão, e começa a bater no vidro e a gritar, sucessivamente, “mexe-te”, “mexe-te”, “mexe-te”. Por razões inexplicáveis, Harry provoca o desaparecimento do vidro. Dudley cai para dentro do “cenário exótico” e a cobra liberta-se. No final, os que até então se deleitavam com o animal, escondem-se e começam a fugir; Dudley fica preso dentro do “aquário”, como se fosse a nova atração do zoo; e Harry Potter estende-se no chão a rir.
É óbvio que, por detrás de uma vitrina, qualquer animal parece um peluche, e qualquer “cenário exótico” fica reduzido a uma montra comercial. Mas, em certa medida, é nisto que o espaço cultural geral está transformado: um imenso jardim zoológico onde se apresentam os animais “em vias de extinção”, mas preservando os visitantes do veneno. Quando a missão da cultura é a inversa. Queres cultura? Então tira o vidro. Solta o animal. Expõe-te à ameaça.
Mas, em certa medida, é nisto que o espaço cultural geral está transformado: um imenso jardim zoológico onde se apresentam os animais “em vias de extinção”, mas preservando os visitantes do veneno. Quando, a missão da cultura é a inversa.
Contra os juízos precipitados, tal como no romance de Rulfo, o “papel” da cultura – se tal coisa existe, de facto – é condenar à insónia. É possibilitar que se passe de um modelo onde a vida é uma passerelle de virtude, para outro onde, como na Metamorfose, de Kafka, acordamos, de repente, “depois de sonos inquietos”, transformados num enorme inseto.
Quando “o tempo livre, em certo sentido, já não existe. E todo o tempo está submetido à condição da produção semiótica para a acumulação de valor” (Franco Berardi), a vida parece ter ficado entregue a uma “classe média culturalmente hegemónica”, “mais interessada em conservar a sua hegemonia do que em transformar a sociedade” (Alfonso Berardinelli), com as secções culturais presas aos dinamismos do lifestyle, unicamente abertas quando se torna necessário acompanhar os anúncios dos prémios, e interessadas na autopromoção e na autoconfirmação.
Mesmo o recém acompanhamento mediático à possível transladação dos restos mortais de Eça de Queirós mostra isso mesmo. A cultura tornou-se o habitat do tupperware, onde apenas interessam os restos que, posteriormente, vão ser servidos requentados, após a passagem no micro-ondas.
Outro exemplo recente é o sucesso que têm tido diversos canais nas redes sociais de promoção de livros e que, segundo indicam alguns artigos, ajudaram a aumentar as taxas de leitura entre os mais jovens. Algo que nos devia deixar mais apreensivos do que entusiasmados.
Em primeiro lugar, porque ler é um risco e as verdadeiras palavras são monstruosas. Por isso, a cultura é, essencialmente, um bem de última necessidade, dado que, como Dante pela mão de Virgílio, ela existe quanto promove a viagem ao inferno, como reflexo do exterior de mim mesmo e não quando se articula como o caminho das borboletas e dos hábitos saudáveis, como se um filme do Bergman fosse uma parte essencial da dieta mediterrânica.
Em segundo lugar, porque a cultura não resiste nem é permeável à ideia de “like”. Duvido que, no dia em que Ulisses chegou a Ítaca, ele tivesse respondido positivamente à pergunta: “então, pah, gostaste?” A questão, realmente, nunca é essa. Não é “gostaste?”, mas é “podemos falar sobre isso?”. Não é “o livro era bom?”. Mas “quão mau era ao ponto de nunca mais te deixar dormir?”. Não é “tiraste alguma coisa para a tua vida?”. Mas “quão desconfortável foi?”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.