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O caminho de Emaús ao som de Capitão Fausto
Prelúdio
Outra vez nesta sala. O desânimo. Essas lágrimas que sulcam na face os trilhos que só elas sabem percorrer. Deixam para trás o sal que arde e a dor que aperta o peito. Mais uma vez vou falar sobre esta dor que me cala. A vergonha do fracasso das promessas feitas ainda que inconscientes. De um tempo que se desejava e não se cumpriu. Outra vez nesta sala e agora vais-me ouvir falar.
Complô
Andar à solta, perder a escolta. Fazer aquilo que me der na gana. Percorrer todos os caminhos. A correr. Andar em contramão, calçar a botifarra. Porque a vida é para se viver. Intensamente. Aos pontapés. Com tudo o que tenho direito. Olho por olho. Dente por dente. Se dás, eu também dou. Se gritas muito, eu dou-te uma dentada. Aqui e agora, não há mais amanhã. Fazemos a festa até rebentar. Desta vez, a quem mais se esmera, o meu amor vou dar. Entrego o meu corpo a quem me acompanhar. Viveremos para sempre na noite das estrelas. A sorrir. Na corrida frenética de uma dança. Só mais uma. Ou todas as que quiseres. Nunca basta. Quero ouvir calão e o som de uma guitarra. Lançar-me à estrada e nunca dizer que não. Porque contigo vai ser fácil. Porque vieste para me salvar.
P’ra todo o sempre eu viverei na fantasia,
na profunda convicção,
que nada de mal há-de aparecer.
Sexta-feira ou nigredo
E em todo o seu esplendor
Chega insuflada, pelo céu traz a chuvada
Ninguém escapa à sombra escura desta nuvem
Nuvem negra
Nuvem carregada
Emancipada, aparecida p’la calada
Nuvem negra, mãe desta chuvada
Nascida a meio do Verão
Olhei o chão abismal. E da minha sombra, nem sinal. Aquilo que eu era apagado na escuridão que me engolia. Mas os olhos habituaram-se a não ver. Já não distingo a água da lama em que rebolo. Tenho os meus nervos mesmo à flor da pele. E p’ra tentar deixar de os ter, aprendo a conversar com a dor, p’ra nunca mais a ver. Estás aí, eu sei. A gritar a plenos pulmões que se rasgam no meu peito. Mas eu tirei-te o ar e silenciei-te. Levo esta carga p’ra casa e transformo-a numa companheira. Alapada nunca baza. Na manhã, na madrugada. Pela tarde e quando o dia acaba. No refúgio da manada. Nem quando eu ’tou dentro da banheira, cheia das lágrimas que chorei.
Finalmente é bom saber
Que existe a razão p’ra ter tanta ansiedade
A chagar-me a tarde inteira
E a acabar em choradeira
O dia claro
Vale a pena ter amigos.
Um raio de luz líquida despontou. Deste-me a mão e abriste-me os olhos. Amaste-me e dei-me conta do mal que fez a cabeça querer desatinar. Uma patada abismal no peito dos putos atirados ao chão. Na pele em que esta ferida se instalou. A festa acontece com a malta a chorar. E a beleza nasceu comigo, de novo. Tu que nasceste em mim. E deixei-te transformares-me. Amar-te, também. Um fogo no coração que jamais se iria apagar.
Queda
Não é o amor que me cala, nem é razão para me enganar.
Agora ‘tamos de pé e julgamos estar livres desta contradição. Que é amar e falhar.
Vale a pena ter amigos,
Por mais que o saiba que alguns vão partir.
E partiste mesmo, pensei. Sem avisar, apanhaste o primeiro comboio. Fiquei apeado, no meio do campo. Atirado a um cantinho. Abandonaste-me. O teu amor não me bastou e saltei borda fora.
E a cinza de um coração que se apagou tingiu o céu.
Um coração com trancas na janela bem fechada
E sem se aventurar
Sem sequer acordar
Como os teus irmãos
Tudo recomeçou. Como um ciclo infinito de morte e vida.
Pois outras mais virão, muitas mais virão. Nunca ‘tás à espera. Muitas mais virão.
Caí e agarraste. Falhei e perdoaste. Matei e amaste.
Mas muitas mais virão, muitas mais virão. Que não viessem, quem me dera.
E tento sem parar…
O que agora é tão difícil, antes nunca nos custou
Tanta vida pela frente e mesmo assim não muda nada
Vim perguntar porque é que a pica não voltou
Anda muito mais difícil do que quando isto arrancou
Longa é a subida e não vai dar com cada um p’ra seu lado
Inverno do nosso descontentamento
Mas nada aprendo com aquilo que provo
Porque é possível que haja algum encontro
Com a minha sombra ali no meio a andar
Retida pelas coisas que eu procuro abandonar
E vou lá ver se há pistas
Ao som de uma batida
Pisar as riscas
Atrasar a partida
Vou lá ver se encontro as pistas
Pegadas de outras vindas
Olhar p’ras vistas
E pensar na vida
Vou lá ver se encontro as pistas
De uma outra vida a recusar
No meio da rotina
Dá sempre para fingir
Que está a resultar
Visita Pascal
Toda a gente anseia por dizer “já passou”
Mas esta é das que passam devagar
Passam dias e dias, passadas correrias
À espera que a alegria possa enfim vir p’ra ficar
Enquanto há tempo fazemos a festa, fachada desta nossa tristeza
Há-de haver festa num sítio onde a malta se possa juntar
Fazemos a festa com gente cheia desta tristeza
Há-de haver festa até se for para estar a chorar
Amanhã
Morre a Primavera sem ninguém notar
Não há mais caminhos a seguir
E nunca nada muda
Emaús
Foi posto um prato à mesa a mais, e mais comida fervia
Onde eras tu ninguém se vem sentar, Senhor.
Oh vem! Arromba as portas da minha casa. Fica comigo. Continuarei a colocar o lugar à mesa, mesmo que não apareças. Continuarei a caminhar mesmo que não perceba. Continuarei a esperar novas possibilidades. Continuarei a repartir-me. Mesmo de olhos toldados. Mesmo no desânimo e no medo.
Moras onde eu vou, mas cá dentro desta esfera és o meu olhar
És quem por mim espera e quem me vê chegar
E quem se atravessou p’ra me entender
Vais saber levar-me a casa se me vires perder
E ao ver que os meus sonhos morrem ao chegar
Nascem mais motivos p’ra saber teimar
Teimar é p’ra quem não quer morrer
Se mais ninguém teimar vais ver que nunca nada muda
Não há melhor razão p’ra querer partir
Vou à procura do que mais amava
Nota: Todo o texto que se encontra em itálico são excertos de letras das músicas do novo álbum “Subida Infinita” da banda Capitão Fausto, lançado no passado dia 15 de março.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.