‘Squid game’ ou o Orçamento do Estado para 2022

Mas ninguém quer dar o passo da sua viabilização, antes preferindo empurrar o outro para quebrar o vidro (no caso, a contrario sensu, viabilizar o Orçamento) e assim poder “seguir a sua vida” com mais tranquilidade.

‘Squid game’ é o mais recente sucesso de uma conhecida plataforma de streaming. A série sul-coreana da “autoria” de Hwang Dong-hyuk é um verdadeiro “soco no estômago” perante a constatação perturbadora que o ser humano, quando confrontado com a morte e a ganância, é capaz de quase tudo, ou mesmo tudo!

De facto, não posso deixar de recomendar que a série não seja vista por menores de idade e mesmo em algumas situações a série deve ser devidamente contextualizada e interpretada, como série de ficção que é, devendo ser vista sempre sob esta lupa. A série é violenta? Sim, indubitavelmente. Mas isso não lhe retira o mérito de nos pôr a pensar sobre a vida, as circunstâncias do que somos e do que poderíamos ser, dos paradoxos de uma sociedade injusta e pouco solidária que convive lado a lado com a miséria e a degradação humana, e ao mesmo tempo a opulência, os luxos e a sumptuosidade de uma classe dita “VIP” e para deleite destes? Com certeza que não. A série tem o mérito de fazer uma crítica muito profunda a uma sociedade sobre-endividada, que oferece escassas oportunidades a muitos e que os encaminha para uma teia de esquemas de sobrevivência que muitas vezes se revelam encruzilhadas de problemas que trazem ainda mais problemas. Os tipos sociais estão lá quase todos. Nesta teia caem marginais, pessoas da classe média, empresários, brilhantes alunos, jovens, pessoas de meia-idade, idosos, etc. Basta estar no sítio errado e à hora errada e podemos, sem dar conta, entrar nesta teia. No entanto, mesmo em circunstâncias extremas, a esperança na natureza humana e em valores como a solidariedade e a bondade encontra-se bem presente na personagem principal, Seong Gi-hun.

Mas isso não lhe retira o mérito de nos pôr a pensar sobre a vida, as circunstâncias do que somos e do que poderíamos ser, dos paradoxos de uma sociedade injusta e pouco solidária que convive lado a lado com a miséria e a degradação humana (…)

Segundo o próprio autor da série, aqui é relatada a “(…) história sobre falhados. É sobre aqueles que lutam contra os desafios do dia-a-dia e são deixados para trás enquanto os vencedores passam de nível.” No fundo trata-se de uma clara alegoria sobre a moderna sociedade capitalista sem freio, em que somos colocados em competição permanente uns contra os outros para atingir um prémio, que será o quê, mesmo? Provavelmente a riqueza e o bem-estar/conforto individual…

Em ‘Squid game’, 456 concorrentes endividados são desafiados a entrar/participar neste “jogo-real” em que quem chegar ao fim, ultrapassando os 6 jogos/desafios infantis ou quase (desde o jogo “macaquinho do chinês”, passando pelo berlinde, até ao jogo da lula), em 6 dias, isto é, ganhar o jogo final, obtém um prémio equivalente a qualquer coisa como 30 milhões de euros. O “problema” é que para chegar ao fim, todos os outros concorrentes terão de ser eliminados (no sentido do jogo e fisicamente falando, “dano-morte”). São pré-estabelecidas três regras: (i) o jogador não pode parar de jogar; (ii) quem se recusar a jogar será “eliminado” (na aceção supra); (iii) os jogos podem terminar se a maioria concordar.

Por esta altura, certamente o leitor já se questionou: mas o que raio tem ‘squid game’ a ver com o Orçamento do Estado para 2022, atualmente em discussão na Assembleia da República?

De facto, ao ver o quinto jogo da série, denominado “pedras de vidro” – que consiste basicamente na travessia, por parte dos 16 jogadores naquele momento ainda em jogo, de uma ponte suspensa a vários metros de altura, e que contém 18 pares de ladrilhos, metade dos quais (em vidro temperado) capazes de aguentar o peso de uma ou mais pessoas e a outra metade incapaz de o fazer – fiquei com a sensação de que os partidos políticos que têm, nos últimos 6 anos, suportado o Governo, viabilizando os sucessivos Orçamentos de Estado dos Governos liderados por António Costa, devem estar a sentir o mesmo que os concorrentes do ‘Squid Game’ “sentiram” neste jogo/desafio.

Por esta altura, certamente o leitor já se questionou: mas o que raio tem ‘squid game’ a ver com o Orçamento do Estado para 2022, atualmente em discussão na Assembleia da República?

Efetivamente, aqueles partidos percebem que se o Orçamento de Estado “não passar” as condições políticas para o Governo continuar em funções degradar-se-ão sobremaneira e não haverá condições de a legislatura chegar ao fim, sendo, muito provavelmente, necessária a dissolução da Assembleia da República e a convocação de eleições legislativas antecipadas.

Além dos meses que todo este processo custaria ao país, como já referido pelo Presidente da República, este cenário poderá representar custos e perdas significativos à esquerda e ganhos à direita, e nomeadamente a um partido que está a cimentar uma posição populista de direita e que poderá desempenhar um papel decisivo na formação de uma alternativa de Governo à direita.

No fundo, os mencionados partidos (nomeadamente o PCP e o Bloco) percebem que o Orçamento de Estado para 2022, até porque tem uma marca de governação de esquerda que é indesmentível, tem de passar, para poderem chegar a terra firme sãos e salvos. Mas ninguém quer dar o passo da sua viabilização, antes preferindo empurrar o outro para quebrar o vidro (no caso, a contrario sensu, viabilizar o Orçamento) e assim poder “seguir a sua vida” com mais tranquilidade.

No entanto, creio mesmo que a posição até “mais cómoda” acaba por ser a do Governo. Para o Primeiro-Ministro, António Costa, caso se confirme o “pior cenário”, o de um “chumbo” do Orçamento de Estado, a principal consequência será ir a votos, mas numa situação vantajosa, pois parte como quem negociou e se propõe executar o já em marcha Programa de Recuperação e Resiliência, e de quem tentou ao máximo chegar a acordo para viabilizar a proposta de Orçamento do Estado (em que impôs como linha vermelha as auto-denominadas “contas certas”). Estes dois trunfos permitem a António Costa conquistar o centro político, suportado por uma narrativa que lhe permitirá apostar no voto útil ao centro para evitar a mais que previsível formação de um Governo com incidência e influência da direita radical, populista e xenófoba.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.