Uma menina bem vestida está sozinha na rua. Não é preciso esperar muito para que várias pessoas se acerquem dela, tentando perceber se está bem e se precisa de ajuda. A mesma criança é, então, caracterizada para parecer uma pedinte. Passam-se horas sem que ninguém sequer se aproxime. A experiência, partilhada num vídeo no Instagram, mostra ainda o que acontece quando a rapariga, com roupas andrajosas, entra num restaurante. Há pessoas que se agarram às malas, há quem lhe peça para se afastar e há até uma cliente que chama um empregado para que a tirem dali. As imagens são particularmente chocantes porque ilustram o óbvio. Mostram-nos que o valor que damos a alguém, a nossa disponibilidade para sentir empatia, a forma como nos preocupamos com o outro depende de uma hierarquia de valores, que inclui (mas não só) a classe social.
Não é difícil (mesmo que seja absolutamente chocante) perceber por que motivo as imagens de crianças subnutridas, amputadas e mortas na Palestina geram tão pouca comoção. A vida daquelas crianças não tem valor. Mais: impede a criação de valor. E é por isso que, mesmo que depois tenha assegurado que se tratava de humor (como se isso fosse justificável), uma imobiliária israelita partilhou nas redes sociais imagens de prédios novos projetadas sobre a destruição de Gaza, com o azul do mar ao fundo, com a legenda: “Acorda, casa na praia não é sonho!”. Não gostamos de o reconhecer, mas há uma ideia utilitária da vida e ela não nasceu agora. Pelo contrário.
Não é difícil (mesmo que seja absolutamente chocante) perceber por que motivo as imagens de crianças subnutridas, amputadas e mortas na Palestina geram tão pouca comoção. A vida daquelas crianças não tem valor. Mais: impede a criação de valor.
Em 1776, Adam Smith não tinha pudores em apresentar a sua teoria do valor da vida humana nos seguintes termos: “A procura de homens, tal como a de qualquer outro produto, necessariamente regula a produção de homens: acelera-a quando se processa demasiado lentamente e fá-la parar quando avança demasiado rapidamente”. Os homens são um produto. Lembro-me de o ter visto escrito nos livros de História, quando apresentavam as rotas comerciais dos Descobrimentos com gráficos onde pessoas escravizadas estavam na mesma categoria do ouro ou das especiarias.
Populações inteiras foram dizimadas ao longo do século XIX, à medida que o Império Britânico expandia as suas fronteiras e encontrava terrenos para ocupar nos quais estavam populações para as quais não via qualquer utilidade.
Num sistema capitalista, a utilidade humana mede-se sob duas perspetivas: a do trabalho e a do consumo. Somos úteis pelo que produzimos e pelo que consumimos. E é também por isso que a criança pobre sozinha no restaurante é só um empecilho que deve ser afastado da vista e a que está abandonada na rua não merece qualquer empatia ou ajuda.
Num sistema capitalista, a utilidade humana mede-se sob duas perspetivas: a do trabalho e a do consumo. Somos úteis pelo que produzimos e pelo que consumimos. E é também por isso que a criança pobre sozinha no restaurante é só um empecilho que deve ser afastado da vista e a que está abandonada na rua não merece qualquer empatia ou ajuda.
À medida que os sistemas de inteligência artificial se vão desenvolvendo, à medida que cada vez mais de nós se tornam obsoletos, que trabalhos nos continuarão a manter à tona desta escala de utilidade? E a quantos chegará a riqueza desligada do trabalho que os manterá como consumidores?
O que acontecerá quando milhões de pessoas em todo o mundo forem declaradas inúteis? O que acontecerá aos que são demasiado pobres para consumir e completamente descartáveis para as necessidades de produção global?
Deparo-me com uma pergunta inquietante, feita por Sven Lindqvist: “A longo prazo, uma sociedade incapaz de manter o direito ao trabalho será capaz de manter o direito à vida?”
Malthus deu há muito tempo a fórmula para resolver os excedentes populacionais: uma combinação de peste, fome e guerra. A questão é que no século XVIII Malthus estava ainda perante um sistema de produção que, apesar de tudo, tinha necessidades de mão de obra muito superiores às que podemos imaginar para um futuro não muito distante.
E talvez seja por isso que cada vez ouvimos mais de perto os tambores da guerra. E os líderes do mundo não parecem estar dispostos a procurar a paz. Somos cada vez mais inúteis. E isso pode custar-nos a vida.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.