Há um texto dos evangelhos que faz as delícias tanto de ateus como de cristãos, por assim dizer, “progressistas”: aquele episódio em que Jesus entra no Templo de Jerusalém e começa a virar as bancas dos cambistas e a correr à vergastada os vendedores de pombas (por exemplo, Marcos 11,15-19). Cá está o Jesus verdadeiro! Aquele que se opõe a toda a forma de “negócio sagrado”, que abomina os esquemas “comerciais” das autoridades religiosas do seu tempo que, claro está, eram uns capitalistas avant la lettre. ‘Fé e comércio, fé e negócio é a maior doença da religião!’ E daqui arranca tantas vezes a ladainha de queixas contra as velinhas de Fátima e os padres que só querem dinheiro, e a Igreja que é um covil de ladrões, etc.
Se é legítimo criticar o aproveitamento do sagrado para benefício próprio, a noção que toda e qualquer associação entre fé cristã e comércio, entre fé e dar para receber, entre ser generoso e esperar uma recompensa é uma abominação é, pelo menos do ponto de histórico, um evidente anacronismo. Dois textos do evangelho bastam para o comprovar. Quando, em Mateus 19,27, Simão Pedro diz a Jesus: “Nós deixámos tudo para te seguir, qual será a nossa recompensa?”, Jesus não lhe responde: “Recompensa? O quê? Sois uns interesseiros!” Pelo contrário, começa mesmo a falar dessa recompensa, que ultrapassará em muito (100x mais!) o que os discípulos possam ter dado. Noutra passagem, em Lucas 6,38, as coisas são ainda mais claras e Jesus soa mesmo financial adviser: “Dai e dar-se-vos-á: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco”. ‘Dai e dar-se-vos-á? Mas, não nos ensinaram que só tem mérito quem dá sem esperar receber? Mas isto não é transformar a fé num negócio?’
Este nosso puritanismo moral, que tem as suas virtudes, choca de frente com estes textos. E ou inventamos uma explicação moralizante para o que está escrito ou, pior ainda, atribuímos estes textos à Igreja primitiva, que deturpou a mensagem de Jesus; atribuindo, claro está!, os que nos agradam ao Jesus da História.
Desta nossa incapacidade de lidar com a ideia que a fé não é incompatível com a lógica do dom e contra-dom, isto é, do comércio, a principal “vítima” é a esmola, um dos pilares da Quaresma (com o jejum e a oração). No nosso mundo, onde esta palavra se tornou politicamente incorreta, a esmola, ou a “caridade” (para não ofender ouvidos sensíveis!), é uma ação louvável, sinal de que estamos atentos ao flagelo da pobreza e que lutamos para o combater, cuidando dos nossos irmãos mais desvalidos. E isto está muito bem! Mas, no mundo de Jesus e no mundo da Igreja até há uns séculos atrás, a esmola era isto e muito mais. Era um ato de fé mais ainda do que um ato de amor.
Para Jesus, como para o judaísmo da sua época, o pobre ocupava um lugar central no universo de Deus. A sua mão estendida era tão sagrada como o altar sobre o qual se ofereciam sacrifícios no Templo. Dar ao pobre era, por isso, mais do que figurativamente, dar a Deus. Era, por assim dizer, “emprestar” dinheiro ao Criador, tornar-se “credor” (isto é, “aquele que crê”) do Senhor do mundo e da História, de Quem se esperava receber, com os “juros” que a Sua generosidade ditasse, a recompensa.
Jesus e os primeiros cristãos não tiveram medo de falar assim da esmola, nem de sugerir que é necessário acumular tesouros no céu (Mateus 6,19-20), “transferindo” o dinheiro com a “ajuda” daqueles que mais necessitam de nós aqui e agora. Mais ainda, reconheceram neste gesto hoje tido por paternalista e/ou assistencialista uma ocasião única de expressar a sua fé em Deus e na bondade da Sua criação. Acreditar que Deus é criador e que Sua criação é boa implica acreditar que a generosidade não é uma quimera; que o bem que fazemos tem um efeito multiplicador e que é justo esperar que colhamos os seus frutos, ainda que, por vezes, assim não aconteça. Para o cristianismo, como para o judaísmo, a esmola era (e é!) o princípio de uma “série” de “favores em cadeia” (sim, é o título de um filme!), na qual o próprio Deus era parte interessada e garante primeiro e máximo do “mecanismo”.
Talvez esta visão das coisas nos pareça difícil de aceitar; talvez até nos escandalize. Mas, e isto é aqui o meu único propósito, ela está profundamente enraizada nos textos do Antigo e do Novo Testamento, assim como na tradição judaica e cristã subsequentes. Este “negócio divino”, por assim dizer, era (e é!) a forma escolhida por Deus, pelo Deus de Jesus, para inspirar no coração dos seres humanos o desejo de ser generosos com quem mais precisa e, ao mesmo tempo, para dizer, não só por palavras, mas também por gestos, a sua fé num Deus cujo maior desejo é dar, sempre, cem vezes mais.
Talvez um bocadinho de fé neste verdadeiro “negócio da China” (e em Deus que o “inventou”) não nos fizesse mal e nos ajudasse a recuperar o sentido cristão da esmola. Boa Quaresma!
NB: As ideias que aqui pude partilhar, de uma forma talvez demasiado breve e incompleta, são explicadas de forma soberba e inspiradora num livro publicado pelo Prof. Gary Anderson, da Universidade de Notre Dame (EUA), intitulado Charity: The Place of the Poor in the Biblical Tradition (Yale University Press, 2013). Fica o convite à leitura.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.