Será este vírus a maior mudança do século na educação?

Creio que os professores que leem isto concordarão que o modelo pedagógico que seguiam na sua sala de aula está agora a ter tremendas dificuldades em ser aplicado. Usaremos esta oportunidade para dar um salto qualitativo?

Passaram três semanas.

Eu, como milhões de pessoas, permaneço em casa com os meus filhos enquanto teletrabalho.

Já muito foi escrito sobre a intensidade e incomparabilidade desta situação. A dificuldade em equilibrar trabalho e apoio às crianças em casa. O quão complexo é para professores e alunos que de um momento para o outro se viram numa experiência radicalmente diferente. Por fim, o desgaste e a impossibilidade de acompanhar ou sequer chegar a todos.

A imensidão desta mudança é refletida por um número: 300 milhões de alunos em casa (segundo a Forbes).

Creio que os professores que leem isto concordarão que o modelo pedagógico que seguiam na sua sala de aula está agora ter tremendas dificuldades em ser aplicado. Mesmo com imenso esforço e dedicação dos professores e dos alunos.

Existem aulas expositivas por videoconferência, fichas de trabalho enviadas por email, carta ou partilhadas numa plataforma de ensino eletrónico e ainda telefonemas… mas parece haver unanimidade em que está a ser muito difícil. O Ministério da Educação considera não incluir a matéria dada nestes meses nos exames de fim de ano (caso existam), prova de que há pouca confiança nos resultados.

Mesmo que se tente melhorar, existe ainda o problema de que apenas uma abordagem provavelmente não será suficiente:

  • Fazer tudo através da internet com vídeo-chamadas e plataformas de aprendizagem eletrónica excluirá quem não tem meios em casa.
  • Passar a ter aulas em canal aberto, seja na RTP2 ou Canal Parlamento, com exercícios lá expostos ou enviados por correio irá reduzir a capacidade de interação entre alunos e professores e se tentarmos completar isso com chamadas telefónicas de esclarecimento implica que, cada professor, terá que explicar a cada aluno sem que haja partilha alargada.

 

Não seria razoável sequer equacionar pedir a professores que em menos de meia dúzia de dias tivessem uma solução viável preparada. No entanto, assumir que a solução pela qual optaremos é temporária parece-me um erro crasso.

 

  • Não seria razoável sequer equacionar pedir a professores que em menos de meia dúzia de dias tivessem uma solução viável preparada. No entanto, assumir que a solução pela qual optaremos é temporária parece-me um erro crasso. Creio que perante a imprevisibilidade desta pandemia, ninguém tem noção de quando irá terminar esta situação.

 

Num estado de emergência, o que antes seria considerado radical passa agora a razoável. Assim, repensar o sistema educativo parece-me agora ser o razoável. Criar algo novo que se possa aplicar no próximo ano letivo, tanto como medida de substituição de aulas presenciais como algo que seja complementar às aulas presenciais, caso estas possam existir.

O que precisa realmente o sistema educativo de fazer?

  1. A forma de exposição da matéria deve permitir que o aluno a possa ver no momento em que é disponibilizada ou (rever) mais tarde.
  2. A matéria para o aluno deve acompanhar a aquisição de conhecimento do aluno (ou seja, cada aluno só deve avançar na matéria quando consolidou a atual).
  3. O professor e o aluno devem conseguir interagir: esclarecimento de dúvidas, orientação e relação.
  4. O professor deve conseguir validar o conhecimento de cada aluno.
  5. Envolver (mais) os pais no processo educativo.

Poderemos considerar isto radical ou utópico. Mas parece-me que mais interessante do que considerações pessoais é saber que isto já era utilizado em várias escolas, em vários países, antes mesmo desta situação. Não precisamos de (re)inventar a roda, apenas adaptá-la para as nossas necessidades!

Concretizando ponto a ponto:

  1. Aulas “assíncronas”: este será o ponto mais fácil. O mais simples seria gravar aulas. Eu seria mais ambicioso! Usaria o meio tecnológico disponível para mostrar texto, imagem, números ou o que fosse útil para ser mais percetível. Introduziria também uma componente mais “divertida” que optamos tantas vezes por considerar dispensável, mas que faz tanta diferença no interesse de uma criança.
    Isto não é uma visão do futuro já existe: um exemplo disso é a Khan Academy (oferece exercícios, vídeos e artigos de qualidade bem como ferramentas para professores que possibilitam um ensino personalizado possibilitando aos alunos aprenderem ao seu ritmo, dentro e fora da sala de aula, gratuitamente). Para além da qualidade, segue o princípio da ludificação que tornam a aprendizagem num jogo e estimula a progressão e a curiosidade. Não é exemplo único, existem várias instituições semelhantes, às quais o Ministério poderia recorrer para conseguir, rapidamente, dar o pontapé inicial nos materiais e distribuí-los seja pela internet, pelos canais de televisão digital terrestre ou por ambos.
  2. Deixemos cair a ideia de que existe uma homogeneidade robótica nos alunos.
    Com o ponto acima permite-se que criemos a possibilidade a um aluno acompanhar a exposição da matéria à velocidade que consegue: mais rapidamente na que tem mais facilidade e mais lentamente na que tem menos. Também os métodos de ensino irão funcionar de maneiras diferentes com cada aluno. Há que abraçar esta liberdade, muitíssimo mais abrangente do que o comum, que cada professor teve em fazer o melhor possível para os seus alunos. Estes paradigmas fazem parte de várias correntes de ensino (presencial) dos países nórdicos com ótimos resultados (ver artigo anterior). Cada aluno só prossegue quando consegue ter a matéria consolidada. Nem o aluno com facilidade fica desmotivado por já ter percebido e estar novamente a rever, nem o que tem dificuldade fica em problemas por não ter assimilado e já se ter avançado para outra. Aproveitemos também para nos focarmos no que interessa, não na forma, mas nas competências, conhecimentos, atitudes e valores.

    Se cada aluno está a progredir à sua velocidade, e só avança quando tem a matéria consolidada, isto permite que o professor tenha noção do estado de cada aluno e o possa desafiar ou questionar. Ao aluno permite ter uma via aberta para pedir esclarecimentos.

  3. Se cada aluno está a progredir à sua velocidade, e só avança quando tem a matéria consolidada, isto permite que o professor tenha noção do estado de cada aluno e o possa desafiar ou questionar. Ao aluno permite ter uma via aberta para pedir esclarecimentos.
  4. Existem várias plataformas com métodos de aprendizagem mais dinâmicos do que as folhas de papel, tendo algo muito positivo: são validadas automaticamente. O feedback instantâneo de cada exercício feito pelos alunos tem duas vantagens: liberta os professores da tarefa demorada de corrigir fichas (para a mais produtiva de realmente ter tempo para os alunos) e dá mais autonomia aos alunos. Ajuda-os a caminhar para a autonomia na aprendizagem: procurar a solução, tentando, se necessário, várias soluções e sabendo sempre se estão ou não corretas.
  5. Agora há um envolvimento muito maior dos pais no processo educativo, uma transparência até agora nunca vista na escola. Isto foi forçado, é certo, ao terem que ajudar os seus filhos em casa enquanto trabalham, longe das condições ideais. Esta transparência da sala de aula – que é agora a sala de estar –  onde estão também os pais, contrasta com a tradicional sala da escola. Nessa os pais cada vez menos podem entrar. É necessário incentivar essa continuidade e perceber que os pais podem fazer parte de todo o processo.

O que implica isto? Considerar que a única maneira de dar um passo de gigante em frente no ensino é assumir que cada aluno terá que ter acesso a um computador ou tablet. A desigualdade entre os alunos crescerá mais a cada dia que passa se não o assegurarmos, mesmo após voltarmos às aulas presenciais.

Se isto parece demasiado radical pergunto: quando voltarem as salas de aula, que professor não gostaria de poder dizer que tem tempo e ferramentas para dar a cada aluno um acompanhamento pessoal e ao seu ritmo?

O nosso sistema de educação mudou de um dia para o outro, à força.

Podemos converter este problema numa oportunidade de fazer aquilo que seria radicalmente impensável antes: mudar o paradigma e dar o exemplo… ou tentar esquecer que isto aconteceu.

Eu não esquecerei.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.