Sentir-se Igreja

As regras para se sentir em Igreja atestam sobretudo uma atitude de coração, de quem se sente pertença da Igreja. O sentido de pertença à Igreja é indissociável da sinodalidade e de uma Igreja em saída.

Os Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola (nota 1) são uma experiência de encontro com Deus, em radical silêncio e solidão, ao fim da qual a pessoa se sente mais plenamente integrada na Igreja e comprometida com o testemunho no meio do mundo. Para entrar na experiência, a pessoa aparta-se do local em que vive e das suas rotinas. No final dos Exercícios, é suposto ser devolvido, transformado, à Igreja e ao mundo. Esta experiência insere-se portanto num horizonte eclesial.

É significativo, portanto, que os Exercícios Espirituais concluam precisamente com uma última parte intitulada: “Para o sentido verdadeiro que na Igreja militante devemos manter, guardem-se as regras seguintes” (EE (nota 2) 352-370). “Sentido” provém de “sentir”(nota 3) e, por sua vez, “sentir” constitui a palavra mais recorrente no texto dos Exercícios Espirituais e remete para uma experiência profunda, os chamados “sentidos interiores”. Por analogia aos cinco sentidos físicos, temos também o sentido que capta reverenciando a Igreja ou, então, graças ao qual nos sentimos abraçados pela Igreja. De facto, Inácio contempla as duas possibilidades: “sentir com a Igreja” e “sentir-se em Igreja”. Embora estas regras surjam no final dos Exercícios Espirituais, elas estão implicitamente presentes ao longo de todo o texto.

As “regras para o sentido verdadeiro que na Igreja militante devemos manter” têm um alcance profundamente ecuménico. No essencial, constam de dois grandes blocos: no primeiro bloco (EE 354-361), Inácio mostra um profundo apreço pela tradição da Igreja, concretamente pelas diferentes formas de religiosidade e práticas de devoção; no segundo bloco (EE 366-369), Inácio mostra que a perspetiva católica integra em si as críticas apresentadas por Lutero, mas sem cair num reducionismo unilateral.

Tal como nos Exercícios Espirituais, a tónica destas regras é colocada na graça e na fé que justificam o pecador, mas sem descurar as obras. Inácio coloca-se numa atitude de diálogo construtivo, empenhando-se em clarificar a linguagem, de modo a ter em consideração, de forma equilibrada, as diferentes posições em conflito. No contexto da reforma protestante e da contra reforma católica, Inácio não diaboliza adversários, pelo contrário, empenha-se em lançar pontes, evidenciando uma perspetiva mais ampla. (nota 4)

O documento Por uma Igreja sinodal (nota 5) considera que o ecumenismo e a sinodalidade se implicam reciprocamente. (nota 6) Com efeito, o ecumenismo não é uma realidade estática; pelo contrário, é fruto de um processo sinodal. Embora tendo vivido no séc. XVI, Inácio tem uma grande sensibilidade ecuménica e vários dos primeiros jesuítas empenharam-se em cerzir as feridas abertas na comunhão da Igreja durante a reforma e a contrarreforma.

Inácio e os primeiros companheiros mostram também uma sensibilidade sinodal, entendida como comunidade, que, apesar das diferenças, se propõe caminhar junta na escuta do Senhor. Com efeito, a fundação da Companhia de Jesus é fruto de um processo do qual participaram os primeiros companheiros, cerca de dez. Tratou-se de um processo sinodal ou, pelo menos, de discernimento em comum, no sentido em que os primeiros companheiros vão alternando momentos de oração a sós com outros de confronto de perspetivas em conjunto, de modo a fazerem caminho juntos. Os passos que levaram ao nascimento da Companhia de Jesus encontram-se registados no documento “Deliberação dos primeiros padres”, datado de 1539.

O fruto deste processo dialógico, em que estiveram envolvidos os primeiros companheiros, num profundo respeito pela diferença, vai levar a Companhia de Jesus nascente, ainda em vida de Inácio de Loiola, aos quatro cantos do mundo. Mais que uma metodologia, trata-se de um caminho no Espírito que remonta ao cristianismo primitivo e do qual encontramos vários testemunhos nos Atos dos Apóstolos, nas cartas de S. Paulo, no Apocalipse e noutros livros da Bíblia.

O documento Por uma Igreja sinodal apresenta a seguinte definição de sinodalidade: “é o caminhar juntos dos cristãos com Cristo e para o reino de Deus, em união com toda a humanidade; orientada para a missão [a sinodalidade] implica o encontro em assembleia”.(nota 7)

Em total sintonia com o Concílio Vaticano II, o documento Por uma Igreja sinodal traduz uma perspetiva de Igreja dinâmica, comprometida em levar o evangelho a toda a humanidade. Na sua vida pública, Jesus é apresentado permanentemente em saída de si próprio, fazendo a vontade do Pai e levando o evangelho a todos. Nos Exercícios Espirituais, Inácio sublinha esta atitude de Jesus, apresentado frequentemente em movimento (EE 91). Num mundo como o nosso, em profunda mutação, a sinodalidade adquire ainda maior relevância.

Na sua vida pública, Jesus é apresentado permanentemente em saída de si próprio, fazendo a vontade do Pai e levando o evangelho a todos. Nos Exercícios Espirituais, Inácio sublinha esta atitude de Jesus, apresentado frequentemente em movimento (EE 91). Num mundo como o nosso, em profunda mutação, a sinodalidade adquire ainda maior relevância.

Há um dinamismo transversal ao documento Por uma Igreja sinodal. Mais que dirimir questões concretas, este documento tem como objetivo agilizar uma maior sintonia entre uma Igreja em processo de conversão e o Espírito Santo que a anima e conduz. Confere unidade ao documento a imagem da “faina pesqueira”, em que a Igreja é a barca e o mar é o mundo, no qual a Igreja desenvolve a sua atividade. Este documento está dividido em cinco partes, encadeadas de forma extremamente dinâmica. Cada parte propõe determinada conversão em vista da parte seguinte. Cada uma das cinco partes, tal como a conclusão final, têm à cabeça uma citação de S. João, relativa às aparições do Ressuscitado. (nota 8) O que se espera da Igreja e de cada cristão é que testemunhe, de facto, o Ressuscitado e a ressurreição.

O Concílio Vaticano II afirma de forma magistral, logo ao início da constituição dogmática Lumen Gentium: “A luz dos povos é Cristo” (LG 1). O Ressuscitado infunde nos discípulos o Espírito Santo, fundando a Igreja e enviando-a a anunciar o evangelho. Este dinamismo no Espírito faz da Igreja nascente uma “Igreja em saída” (nota 9). Uma Igreja assim entendida partilha “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e todos aqueles que sofrem” (GS 1).

As regras para se sentir em Igreja atestam sobretudo uma atitude de coração, de quem se sente pertença da Igreja. Estas regras ajudam, com as devidas atualizações, a uma efetiva e afetiva pertença à Igreja. O sentido de pertença à Igreja é indissociável da sinodalidade e de uma Igreja em saída. Não obstante a multiforme diversidade que caracteriza a Igreja e se reflete nos participantes no Sínodo da Sinodalidade, foi possível chegar a um documento final com o voto favorável de mais de dois terços (nota 10). A sinodalidade é tecida no presente por três agulhas, as três encíclicas do Papa Francisco: a sinodalidade tem como nascente o Sagrado Coração de Jesus (Dilexit Nos) que, jorrando para a vida eterna (Jo 4, 14), funda e envia a Igreja, movendo a criação (Laudato Si) e a humanidade (Fratelli Tutti) a uma crescente participação em Deus. Deus “habita e trabalha” (EE 235 e 236): a presença de Deus é dinâmica em cada coração, na Igreja e no mundo. Sentir-se pertença da Igreja e viver em atitude sinodal pressupõem-se reciprocamente. Desse modo, a justiça e a paz vão-se instalando e estendendo a tudo e a todos.

 

 

Nota 1 – Santo Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, Apostolado da Oração, Braga, 2016.

Nota 2 – Passaremos a indicar a sigla EE para citar o texto dos Exercícios Espirituais.

Nota 3 – Santiago Madrigal SJ, “Reglas «sentir la Iglesia» ”, in Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Ediciones Mensajero – Sal Terrae, 2007.

Nota 4 – Santiago Madrigal SJ, “Reglas «sentir la Iglesia» ”.

Nota 5 – Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Por uma Igreja sinodal, comunhão, participação, missão, Sínodo 2021-2024.

Nota 6 – Por uma Igreja sinodal, nº 23, 38-40, 121.

Nota 7 – Por uma Igreja sinodal, nº 28, 31, 155.

Nota 8 – Parte I, “no coração da sinodalidade”, tem como condição sine qua non a conversão dos pensamentos, sentimentos e imagens que habitam os nossos corações e a conversão da ação pastoral e missionária (nº13-48); Parte II, “no barco juntos”, respeita à conversão das relações que constroem a comunidade e configuram a missão (nº49-78); Parte III, “lançai a rede”, respeita à conversão dos processos, nomeadamente [1.] o discernimento eclesial, [2.] processos de decisão e [3.] cultura da transparência, prestação de contas e avaliação (nº79-108); Parte IV, “uma pesca abundante”, respeita à conversão dos vínculos, com implicações no intercâmbio de dons e numa nova rede de laços num mundo em profunda mudança (nº109-139); Parte V, “também eu vos envio”, acerca da formação em sinodalidade missionária, de todo o povo de Deus (nº140-151) (cf. Por uma Igreja sinodal, nº 11 e índice).

Nota 9 – Papa Francisco, Exortação apostólica Evangelii Gaudium, 2013, nº 20-23.

Nota 10 – Por uma Igreja sinodal, nota à Introdução, Ed. Paulus, p. 11.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.