Se a Rússia não é democratizável, e se será sempre ambiciosa territorialmente, como dizem os que defendem o direito de Moscovo ao seu espaço vital, a não ser roubada dos seus satélites e a não ser transformada, como podemos conviver e integrar a Rússia no nosso espaço democrático e livre?
Ou não é possível trazer a Rússia para a liberdade, o Estado de Direito, a democracia e o respeito do direito internacional, e é impossível sentirmo-nos seguros; ou a Rússia não é uma ameaça e, portanto, as adesões de outros países à NATO também não a ameaçam. A menos que se imagine que o objectivo do Ocidente é atacar uma Rússia democrática e livre. O que, sabemos, não é. Nunca foi, ao longo dos trinta anos de pós-Guerra Fria.
Pelo contrário, o problema é que a Rússia não se democratizou nem emendou e, portanto, é uma ameaça. Como os ucranianos sabem, os bálticos temem e os polacos se lembram. O grande problema é esse. A Rússia tornou-se na continuação da União Soviética por outros meios. Ou simplesmente não deixou de ser o que sempre foi: imperialista e expansionista. E avessa ao Direito.
A única garantia que o mundo tem de que a Alemanha não voltará a ser o que foi duas vezes no século XX, um Estado agressivo e perigoso, é a lição que a Alemanha aprendeu. E interiorizou. A História e cultura alemãs não desapareceram. Os velhos filósofos não foram deitados fora. Mas o novo regime reconheceu os males da Alemanha passada e recorda-os sem hesitação. Como há dias um jornal destacava, em vez de uma estátua a um qualquer herói militar, a um pai da pátria pela espada, como é comum em quase todos os países, incluindo democracias sólidas, no centro de Berlim está um monumento a recordar os mortos da Alemanha nazi. Os alemães do século XXI têm, na sua enorme maioria, vergonha do que a Alemanha foi e que não querem que volte a ser. Em Moscovo não há nada disso sobre a União Soviética. E em muitos lugares da Europa, também não.
O grande problema é esse. A Rússia tornou-se na continuação da União Soviética por outros meios. Ou simplesmente não deixou de ser o que sempre foi: imperialista e expansionista. E avessa ao Direito.
A Oeste nada de novo é um dos filmes de guerra mais violentos, onde o sobrevivente sofre mais que todos os que morrem ao longo do filme. Só sai vivo da guerra quem matou, em vez de ser morto. E se não tem uma boa razão para odiar o inimigo, carrega o peso de cada um desses mortos. E de todos os seus companheiros, que morreram sem que consiga chamar-lhes heróis porque não encontra virtude na morte dos outros.
A Oeste nada de novo resume a lição que os alemães apreenderam, primeiro em 1914 e, como não bastou, depois em 1945: que nada justifica uma guerra de agressão. Quem já falou com alemães sobre as guerras sabe que há, na maioria deles, um embaraço profundo e contraditório. Um país orgulhoso da sua racionalidade, da sua indústria, da sua organização, da sua competência, que se envergonha profundamente do seu lugar na História. E, mais intimamente, do lugar que os pais, avós e bisavós de cada um ocupam nessa culpa colectiva. Esta vergonha de ser alemão, que está em permanente conflito com a admiração que os alemães têm por si e pelo seu país, é fundamental para perceber a Alemanha. E para compreender, em parte, o que se passa agora em Berlim.
Há dias, a propósito do envio ou não de carros de combate para a Ucrânia, um canal de televisão fez entrevistas de rua. Muita gente respondeu que era contra o envio dos carros de combate. O que dizem não é aquela coisa entre o cobarde e o colaboracionista, de que assim nos pomos a jeito para nos fazerem cair uns mísseis em cima. O que dizem é: nós aprendemos, em duas guerras horríveis de que fomos culpados, que a guerra é sempre miserável. Na Alemanha, onde a maioria dos inquiridos apoia a Ucrânia, o horror à participação na guerra tem este efeito. Que cabe aos políticos alemães corrigir, distinguindo agredir do direito de se defender.
Precisamente ao contrário da Alemanha, a Ucrânia não começou uma guerra, foi invadida. Teve de se defender. Mas a Rússia está a fazer o que a Alemanha fez no passado. Tentar ocupar e destruir um país por causa das suas ambições territoriais e de poder. Para o Ocidente, é essa a discussão que conta sobre esta guerra. A Rússia tem direito a ser um poder com esferas de influência, estados vassalos e territórios submetidos? Se sim, porquê? Se não, como é que isto se resolve?
E regressamos ao começo. E às razões fundamentais para o Ocidente estar com a Ucrânia. Se a Rússia não consegue ser democrática, livre e pacífica, só nos restam duas opções: aceitar a circunstância e a consequente submissão de povos e países vizinhos. Hoje, a Ucrânia, depois logo se verá. Ou recusá-la e, nesse caso, reconhecer que a luta existencial da Ucrânia é nossa também.
O desfecho da guerra da Ucrânia decidirá se a Rússia pode ser uma potência ameaçadora, ou se tem de se reger pelas regras do mundo pós-guerra Fria. É isto que está em causa, até ao dia em que a Rússia deixe de ser autoritária, imperialista e ameaçadora. Mas isso é um problema que o Ocidente dificilmente conseguirá resolver. E, como aprendemos nos últimos anos, o comércio também não.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.